A figura de Lampião sucinta criticas variadas, de rigor jurídico, sociológico e antropológico. Poucos vêem algo além disso e se escandalizam com seus pseudo moralismos. Tudo isso parte da incompreensão da mente moderna de um resquício recente, que bate quase a nossa porta, de como os antigos e arcaicos pensavam.
A mentalidade do Sertanejo não é moderna e, sobretudo, não é escrava da moral cristã, como dizia Niestche (2001), mesmo já inserida em um ambiente pós-cristão. A falha de muitos sociólogos está em não reconhecer que, socialmente, o Nordeste no início do séc. XX tinha uma composição que em muitos aspectos lembrava as sociedades arcaicas Indo-Europeias (cujas estruturas perduraram fortes até o Medievo, que por ignorância simples, muitos “intelectuais” brasileiros colocam como fonte última de comparação, como se o Medievo europeu, por si só, não fosse também resultado de algo mais arcaico…): a riqueza estava concentrada em gado e terras, mais do que em comércio ou outra coisa, uma organização social (e política) de base clientelista (que ia desde vaqueiros, trabalhadores, passando por famílias menos prestigiosas) em torno de “clãs”, com uma classe clerical de trânsito livre entre os agentes políticos (“coronéis”, representantes clânicos de poder sustentado pela base clientelista quase feudal) e a alimentação social (talvez pelo “isolamento” e “atraso”, dirão certos sociólogos) de uma moral de honra, palavra e reputação pública, de inconsciente fundo aristocrático.
A formação espacial do Cangaço por exemplo, não diferia das dos Citas indo-europeus. Como analisa Villela (1995)
" O espaço alisado impõe uma dificuldade de orientação ao sedentário. Acostumado a mover-se em relação, o sedentarizado vê-se com problemas quando deve deslocar-se num espaço sem referências como o do Escita; um mundo sem formação: "Quando eles vêem uma Foice", diz Hartog sóbrio os Persas de Dario, "a única coisa que eles podem fazer é segui-los 'na trilha' (otißov) e se eles perderem o caminho, param. Isto faz com que uma guerra entre Escitas e Persas consistia-se numa fuga constante aquela perseguição desesperada destes sem se deixar nunca apanhar.
O relato do tenente Odonel desenha um quadro muito semelhante para as tropas volantes. Inseridas num espaço itinerante, elas não tem como recurso de orientação senão os rastros deixados pela passagem dos grupos perseguidos e as informações que podem se retirar da população civil circundante. Sem uns e sem outras, como tropas estão irremediavelmente lançadas numa zona cega, região de plena escuridão. Existe, inclusive, uma categoria nativa para este tipo de situação: o policial que perde a rota perseguida fica " bestando " num espaço homogeneizado sem qualquer marco segundo o qual pode orientar-se."
Nesse sentido, a Guerra de Razzia (ataques, invasão, pilhagem) era uma parte natural desse meio. Esta era a forma arcaica da Guerra e com ela estava a forma arcaica de heroísmo, segundo Priscilla Kershaw:
"Isso, por sua vez, nos lembra o que era a "guerra" nos tempos do Proto Indo-Eurpeus e na história inicial de todos os povos. A guerra era razzia: roubo de gado e rapto de mulheres. Até mesmo a guerra de Tróia foi uma razzia em grande escala. O que realmente aconteceu nunca saberemos, mas entre as passagens mais realistas da Ilíada estão aquelas em que Aquiles gaba-se de seus ataques por terra e mar aos vizinhos de Tróia durante o anos monótonos do cerco e as reminiscências de Nestor sobre seu ataque ao gado em sua juventude, enquanto na Odisséia temos o conto do herói do viking cretense, um personagem fictício cujo comportamento era muito parecido com o do próprio Odisseu após sua partida de Tróia. " (Kershaw, 1997, pag. 23)
Os atos bárbaros, violentos e sanguinolentos de Odisseu, Aquiles e Nestor em seu ataques (como "cangaceiros gregos") inspirariam na mentalidade moderna o horror e a pecha nestes de " estupradores, bandidos e facínoras ". Mas não faziam na mentalidade da época. Isso porquê o herói moderno é essencialmente um escravo da moral, uma copia do messias Judaico-Cristão.
O herói tradicional, indo-europeu, mais bem representado pelos gregos, é alguém que transcede a moral. Sua função é se tornar um arquétipo, superar as próprias limitações através de seus feitos. A religiosidade olímpica impedia a transcendência da alma, assim, nessa impossibilidade de o homem ser elevado a um estatuto superior de existência, a divindade aqui não exige do homem nenhuma forma de transformação interior, não cabe espaço para alguma questão soteriológica sobre o post-mortem, ou algum tipo de caminho religioso pessoal, ascese, ou aspiração a alguma forma de santidade; estas não são questões que movem esta forma religiosa. De fato, a antropologia olímpica não concebe uma identidade imortal ao homem, como uma noção de alma. A alma homérica não é nada mais que um sopro, extrínseco ao ser do homem, e que o deixa no momento da morte, para posteriormente existir como uma mera sombra inconsciente no Hades. A identidade do homem se restringe à sua forma (o corpo) e ao seu nome, e diante da morte do primeiro, a única forma de imortalidade que lhe cabe é a do último, quando a memória do seu nome é preservada e seus louvores cantados pelas gerações posteriores. “A coroa da vida”, diz Otto (2007, p. 121).
Robert Parker estabele isso em seu livro On The Greek Religion:
" E a piedade e as virtudes morais normalmente não fazem um herói; qualidade de estrela, excepcionalidade, noticiabilidade são os critérios relevantes na maioria dos casos. "
Confirmando isso Priscila Kershaw, citando Peter Walcot, nos diz:
"Tucídides não estava errado", escreve Walcot, "ao descrever a antiga Grécia como uma era de piratas, acrescentando, ainda, que tal violência naaquele tempo não conferiu desgraça aos perpetradores, mas foi, ao contrário, um fonte de reputação." Odisseu certamente não espera nem recebe condenação por suas atividades de pirataria, e as razzias de Aquiles foram um motivo de vanglória, pois trouxeram-lhe mulheres e despojos. " (Kershaw, 1997, pag. 23).
A mentalidade do Sertanejo desenvolveu-se como as dos antigos, muito por conta do isolamento geográfico que acentou o arcaísmo daquele chão tardiamente medieval, onde não se tinha o mínimo de resquício do Iluminismo, segundo Luis Soler:
" Tais considerações trazemos à baila para ilustrar, antecipadamente, o que nos parece ser a última chave que explica a ausência de qualquer influência renascentista nos grupos humanos que povoaram o sertão. (...) Efetivamente, aqueles grupos não foram recrutados entre as camadas que podiam estar mais ou menos impregnadas da mudança de civilização representada pela Renascença. Eram populações a nível de soldadesca, de camponeses e pequenos comerciantes, no melhor dos casos; de párias e buscadores de fortuna. Não fosse assim, aliás, o vasto sertão, duro e difícil, incompatível com naturezas frágeis, não os haveria de reter. (...) Por outra parte, na Corte lisboeta, o “espírito da Renascença” certamente, aparelhava naus, fornecia armas e recursos. Mas o que embarcou no outro lado do Atlântico para povoar o interior nordestino, foi ainda o “espírito medieval” com suas lendas, suas crendices e seus mitos, seus hábitos, sua tábua de valores humanos e morais, suas rústicas diversões e suas artes despretensiosas. (SOLER, 1978, p. 74).
Com base nisso o heroísmo pro Sertanejo, de forma semelhante ao Gregos, desenvolve-se livre de amarras morais, mas cultivando no culto da valentia e da excepcionalidade.
Nos começos da vida social na caatinga, ao longo dos séculos XVII e XVIII, de forma generalizada, e mesmo de boa parte do XIX, em bolsões remotos, a vida da espingarda não se constituía apenas em procedimento legítimo à luz das circunstâncias, mas em ocupação francamente preferencial. O homem violento, afeito ao sangue pelo traquejo das tarefas pecuárias e adestrado no uso das armas branca e de fogo, mostrava-se vital num meio em que se impunha dobrar as resistências do índio e do animal bravio como condição para o as-sentamento das fazendas de criar. Naquele mundo primitivo, o heroísmo social forjava-se pela valentia revelada no trato com o semelhante e pelo talento na condução cotidiana do empreendimento pecuário. Nas festas de apartação, em que se engalanavam as fazendas no meado do ano, um e outro de tais valores — é dizer, valentia e talento — precisavam somar-se para a produção ou confirmação de heróis pelas vias da vaquejada bruta.
A cultura sertaneja abonava o cangaço, da mesma forma que os Gregos abonavam seus facínoras heróis ( como o enlouquecido atleta assassino em massa Cleomedes de Astypalaia ) malgrado o caráter criminal declarado pelo oficialismo — voz litorânea tomada como intrusa naquele meio — com as populações indo ao extremo de torcer pela vitória dos grupos com que simpatizavam, como se dá hoje nos torneios entre clubes de futebol, guarda-das as proporções.
O Sertanejo admira o cangaceiro e o trata como herói porquê ele é a personificação da coragem, valentia e excepcionalidade, como diria Câmara Cascudo, ao ponto de ser tornar arquétipico. A legenda dos capitães de cangaço mais famosos vai sendo esculpida de forma sedimentar pelos versos dos cantadores de feira, emboladores e cegos rabequeiros, todos dispostos a cantar a última façanha de guerra do grupo de sua preferência. Realizando assim a transcendência olímpica do indivíduo através do seu nome mantido como mito pelas gerações posteriores.

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