sábado, 12 de abril de 2025

Nada é Meu - Giovanni Papini


maior problema do homem, como das nações, é a independência. Pode ser resolvido? O que possuo parece meu, mas sou sempre possuído pelo que tenho. A única propriedade indiscutível devia ser o Eu, e contudo, bem aquilatando - onde o resíduo absoluto, que não depende de ninguém? 


Os outros participam, ausentes ou presentes, da nossa vida interior e exterior. Não há forma de salvar-se. Mesmo na solidão perfeita, sinto-me, com espanto, átomo de um monte, célula de uma colônia, gota de um mar. Há, no meu espírito e na minha carne, a herança dos mortos; o meu pensamento é devedor dos defuntos e dos vivos; a minha conduta é guiada, mesmo contra a minha vontade, por seres que não conheço e que desprezo. 


Tudo o que sei, aprendi dos outros. Qualquer coisa que adquira, é obra de outros e - que importa a tenha pago? Sem o operário, sem o artesão sem o artista, eu estaria mais nu do que Caliban, ou do que Robinson. Se me quero mover, tenho necessidade de máquinas não fabricadas por mim e guiadas por mãos que não são minhas. Vejo-me obrigado a falar uma língua que não inventei; e os que vieram antes me impõem, sem que me aperceba, os seus gostos os seus sentimentos, os seus preconceitos. 


Se desmonto o meu Eu pedaço a pedaço encontro sempre fragmentos que procedem de fora; podia opor, em cada um, uma etiqueta de origem. Isto é de minha mãe, isto do meu primeiro amigo, isto de Emerson, isto de Rousseau, isto de Stirner. Se realizo a fundo o inventário das apropriações, o Eu se converte em uma forma vazia, em uma palavra sem sentido próprio.


Pertenço a uma classe, a um povo, a uma raça; não consigo nunca evadir-me, faça o que fizer, de certos limites que não foram traçados por mim. Cada ideia é um eco; cada ato um plágio. Posso tirar os homens da minha presença, mas uma grande parte deles continuará vivendo, invisível, na minha solidão. 


Se tenho criados, devo suportá-los e obedece-los; se tenho amigos, tolerá-los e servi-los, e os dinheiro querem ser guardados, cultivados, protegidos, defendidos. Poder equivale a escravidão. Nada, em realidade, me pertence. As poucas alegrias que desfruto, devo-as a inspiração e ao trabalho de homens que já não existem ou que nunca vi. Sei o que recebi mas ignoro que mo deu. 


Consegui reunir alguns milhares de milhões. Não o teria podido fazer se milhões de homens não houvessem trabalhado comigo, se milhões de homens não tivessem tido a necessidade daquilo que eu lhes podia vender, se milhões de homens não houvessem inventado as formulas, as máquinas, as regras sobre as quais se funda a vida econômica na terra. Abandonado a mim mesmo, eu teria sido um selvagem, um comedor de raízes e de cachorros mortos. 


Onde, pois, o núcleo profundo e autônomo, de que nenhum outro participa, que não foi gerado por nenhum outro e que se possa verdadeiramente chamar meu? Serei, em realidade, um coágulo de dívidas, a escrava molécula de um corpo gigantesco? E a unica coisa que acreditamos verdadeiramente nossa - o Eu - é, talvez, como tudo o mais, um simples reflexo, uma alucinação do orgulho?

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