sábado, 26 de abril de 2025

Raça e Cultura - Julius Evola

 


Todos sabem da nova importância que a teoria da raça assumiu hoje, especialmente por causa das recentes convulsões na ideologia política alemã. Várias discussões surgiram em torno desta teoria e suas aplicações. Para alguns, o racismo é o símbolo de um novo espiritualismo. Para outros, é o perigo de uma erupção contaminante do elemento biológico ao nível de valores mais elevados. Para alguns, é um mito supersticioso, já que a ideia de raça é hoje algo extremamente indefinido. Para outros, representa um apelo a um novo realismo, o reconhecimento do substrato mais profundo ao qual toda ação organicamente criativa deve apelar. Com todo esse desacordo, algumas considerações relevantes no espírito de oferecer uma explicação esclarecedora podem ser de interesse, pois não é raro observar conexões, mesmo inconscientes, entre a teoria da raça e a noção de nação como estoque, que é muitas vezes tomado por muitas reações contra os perigos da cultura cosmopolita recente.

A premissa do racismo é decididamente pluralista. A “humanidade” não existe.

Existem muitas raças, e cada uma delas tem dons e características especiais, que não podem ser mudadas sem afundar na degeneração e na decadência.

De acordo com profundas leis biológicas e morfológicas, pelas quais cada raça é constrangida, corresponde sua própria alma, sua própria verdade e sua própria visão de mundo, que pode ser ora óbvia, ora latente, mas não muda em essência no curso da vida. Daí surge um pluralismo cultural e espiritual. Para tantas raças quantas existem, existem tantas “verdades” e concepções do mundo. Discute-se se é possível falar em termos absolutos da justiça, ou da falta dela, de uma dada visão de mundo. Pode ser faladas apenas em relação a uma raça definida, a seus objetivos e sua vontade de existência e poder, porque são biologicamente inatas e são suficientes para manifestar sua vida, enquanto para uma raça diferente podem representar não apenas um sério perigo, mas sua destruição completa. Racismo significa, portanto, o reconhecimento de uma diferenciação definida dos homens como um fato básico:

a relação de um determinado grupo de homens com um “tipo”; purificação do estoque que lhe corresponde de elementos étnicos e culturais estranhos;

adesão íntima do indivíduo à tradição de seu próprio sangue e às “verdades” que estão intimamente ligadas a esse sangue; e eliminação de todas as misturas.

Esta é a forma mais recente da doutrina da raça, na qual se reconhecem dois elementos. A raça não é considerada apenas como um conceito biológico, mas como um conceito cultural. Mas qual é a relação entre os dois conceitos? Qual é o ponto de referência final? Para entender o racismo, definir a extensão de suas reivindicações e integrar seus aspectos positivos, devemos enfrentar esse problema.

Quando o racismo é uma reação contra um universalismo abstrato, contra o ideal iluminista e racionalista de 'princípios imortais válidos para todos', quando é a exigência de uma verdade de tipo diferenciado e orgânico, que deve corresponder às mais profundas forças do nosso ser — sob esse aspecto, o racismo certamente representa algo positivo e saudável. Mas deve-se reconhecer com igual clareza que o racismo se torna uma aberração sempre que se sente que uma defesa e cultura de raça de tipo quase zootécnico em seu aspecto simplesmente biológico e empírico é o equivalente eo ipso de algo criativo e decisivo. Se a preservação e reintegração da pureza da raça em um animal pode ser tudo, em um homem isso pode constituir uma condição necessária sob certos aspectos, mas em nenhum caso é uma condição suficiente, porque o homem, como tal, não é definido pelo simples fator de ‘raça’.

Esse materialismo ingênuo vai longe demais quando se fala simplesmente de “raça”, mas ainda mais de um “espírito” de raça, passando, portanto, a uma espécie de mística do sangue. Na realidade, uma mística de raça é o que marca os tipos mais baixos da sociedade humana. É a característica do tipo primitivo e totêmico de sociedade.

O totem é o espírito místico da tribo e da ordem, elevado a tabu e concebido como a força vital íntima dos membros individuais, como a alma de suas almas e como o elemento primário dentro deles.

Aqui, o estado em que o indivíduo se sente como um grupo, raça ou tribo rege incondicionalmente e extrai desse sentimento seus traços distintivos fundamentais, não apenas biológicos, mas psíquicos em uma extensão ainda maior.

Há um tipo de racismo que, como mística do sangue mutatis mutandis, remete precisamente a esse nível e, portanto, apesar de todas as aparências, a formas de vida naturalista e, em última análise, pré-pessoal, e constitui, portanto, um perigo tão grave quanto o universalismo que combate.

A raça, neste caso, continua sendo natureza, e a afirmação que ela faz diante dos valores da personalidade e da cultura deve ser enganosa e falsa.

Na Alemanha, os racistas estão sempre falando sobre arianismo. Infelizmente, eles estão muito longe de uma compreensão desse conceito que poderia levá-los a uma visão mais elevada. De fato, de acordo com sua concepção original, arya é sinônimo de dvija, ou seja, “renascer” ou “nascer duas vezes”. Sua natureza é definida por um ato definido: a iniciação. O Manava Dharma Shastra (11.172) realmente declara que, quando o arya negligencia esse ato, ele não tem como realmente se distinguir do shudra, ou seja, o elemento que constitui as castas sombria e servil, que originalmente eram formado a partir de aborígenes conquistados pelos arianos. Se entendermos a “iniciação” não em seu absoluto sentido tradicional, que se relaciona com horizontes interiores hoje quase completamente esquecidos, mas em seu sentido analógico de cultura – isto é, de uma ação pela qual o indivíduo se liberta de sua própria natureza básica, reage contra ela e impõe uma lei sobre ela - então temos a premissa fundamental para alcançar uma concepção mais elevada da doutrina da raça.

Quando um ser deve tudo o que dá forma e sustentação à sua vida às forças do instinto e do sangue, ele ainda pertence à ‘natureza’. No caso de um ser humano, ele ainda pode desenvolver qualidades superiores nessa base, mas tais qualidades permanecerão sempre uma expressão da natureza, não uma posse de sua personalidade, como os esplêndidos traços raciais que podem ser encontrados em um tigre ou em todos os 'puro sangue'. A passagem do reino da natureza ao da cultura (no sentido clássico supracitado, e não no sentido moderno de instrução, erudição etc.) elemento da raça como a alma está em relação ao corpo formado à sua imagem. Desta forma, as leis e os instintos de natureza orgânica não são mais a base e o princípio das faculdades espirituais e “verdades” que pertencem a um determinado sangue, mas vice-versa.

Aqui encontramos um estilo que assume a “natureza” como matéria e veículo primário, mas não se deixa reduzir à natureza, e atesta a presença e ação formativa de um elemento de ordem metabiológica.

Exatamente esse “estilo” constitui o que pode ser chamado de raça em sentido superior, com referência ao homem como homem e não como animal, “superior” ou não.

No reino animal e nas sociedades primitivas, a raça pertence ao nível biológico, e começa e termina aparecendo como um mero fato, impermeável a qualquer iniciativa criadora e predeterminada coletivamente. Quando falamos do homem, porém, a “raça” não está mais nesse nível, embora se manifeste nele, tornando-se visível por meio de um complexo típico e bem determinado de qualidades, atitudes, disposições, sensibilidades e interesses, que, no entanto, em última análise, são apenas sinais e símbolos para o fato de natureza espiritual: cultura como o substrato profundo da raça.

Quando as antigas tradições falam das origens ‘divinas’ de certas raças;

quando em nossa antiguidade clássica os patrícios baseavam sua reivindicação de dignidade no fato de terem uma hereditariedade sagrada unida à dignidade de sangue, que havia sido despertada à vida por um 'herói' ou antepassado semi-divino e que estava ligada a uma tradição ritual; quando arya contava como sinônimo de 'renascido' ou as 


A verdade é que uma raça com sua própria cultura degenera quando seu espírito declina, quando desaparece a tensão íntima a que devia sua “forma” e seu “tipo”. É então que a raça muda ou é corrompida porque está danificada em sua raiz. Então os elementos étnicos e biológicos são privados do vínculo estreito que os mantinha unidos na unidade da forma, e a primeira alteração será suficiente para produzir rápida degeneração e corrupção. O colapso e a mudança do estoque não são apenas morais, mas mais do que isso, étnicos e biológicos. Nesse caso, ele retorna ao nível das simples forças da natureza e sucumbe à sua própria contingência nesse nível.

Certamente, a preservação da pureza étnica deve aparecer – onde a fala dela corresponde à realidade – como a condição mais favorável para que o ‘espírito’ de uma raça possa se manter em sua força e pureza originárias, assim como no indivíduo a saúde e integridade do corpo são garantias da plena eficiência das faculdades superiores. Caso contrário, um homem moralmente constituído e forte em sua vontade não tem uma vida interna adequada por causa de sua fraqueza externa. Analogamente, quando uma raça tem uma cultura verdadeiramente forte e completa por sua alma e base, o simples fato de seu contato e até mesmo se misturar com outras raças não significa simplesmente sua destruição. Ao contrário, seu espírito pode funcionar como um fermento invisível e irresistível sobre os elementos estranhos, de modo a reduzi-los ao modelo. Não é preciso citar os exemplos históricos desse processo, que todos conhecem — o processo de passagem da ideia de raça para a ideia de império.

Este é um elemento muito importante para a oposição que mencionamos acima.

Onde a ideia naturalista de raça só pode levar a um particularismo limitante, a um exclusivismo mesquinho e ciumento sinônimo, na maioria das vezes, de medo diante de horizontes cuja extensão parece além da capacidade – na ideia superior de raça, o potencial da função imperial é inerente, que supera tanto o internacionalismo nivelador quanto um racismo desintegrador.

Mussolini escreve corretamente: 'Para o fascismo, a tendência ao império, ou seja, a expansão das nações, é uma manifestação de vitalidade, seu contrário (a atitude de ficar em casa) é um sinal de decadência. O elemento que faz uma raça, verdadeira e espiritualmente, inevitavelmente a leva para além de si mesma.

Há uma consideração final. É um elemento inerente ao próprio conceito de que todo “retorno” à raça como natureza deve ter um caráter coletivista e, em seus pressupostos políticos, demagógico. Essa demagogia se disfarça em vestimentas místicas e estruturas autoritárias. É um retorno do poder tirânico do demos puro, o advento do “espírito da ralé” e a reencarnação da “horda primordial”.

O ‘retorno’ à raça na outra concepção significa, ao contrário, retornar à sua tradição interna, e está intimamente ligado à ideia de um líder [Duce] e de uma ordem hierárquica. Se a raça é uma formação do alto, um triunfo da 'cultura' sobre a 'natureza', a renovação da força formativa primordial que dorme em seu seio só pode, em termos práticos, ser efetiva em uma elite com um olhar límpido, uma vontade firme e uma superioridade inabalável; uma elite que atuará em duas direções. Antes de tudo, ela atuará em função de ordem, autoridade, formação e articulação de tudo o que é social em termos de um estado que se torna a enteléquia, que ela, precisamente o princípio formador vital da interno e da nação. Em segundo lugar, atuará com uma ação de presença. Queremos dizer que suas cabeças, como encarnações destacadas do “tipo” da raça, se apresentam como “ideais realizados” e, como tal, reacendem um poder que está no fundo dos indivíduos. Eles são a fonte da magia do entusiasmo e da animação que despertam em termos de verdadeiro reconhecimento e dedicação heróica e consciente, mais do que uma sugestão passiva e coletiva. 

Essa foi exatamente a ideia que Mussolini expressou ao falar do estoque não como unidade quantitativa, coletiva ou naturalista, mas, ao contrário, como uma 'multidão unida por uma ideia', uma ideia que 'se realiza na consciência e vontade de poucos ou mesmo de um só; um ideal que se move para a sua realização na consciência e na vontade de todos'. os fatores materiais, étnicos ou políticos no sentido estrito, redescobrem um ponto de unidade sólido e vivo em uma forma de contato galvanizador.

Este é o ponto final. Ao retorno da mística da 'horda primordial', à ideologia racista que subordina tudo ao direito de uma mera comunidade de sangue, solo e origem, opõe-se a concepção aristocrática e a tradição da raça como manifestação de uma força de 'cultura', uma tradição que encontra seu coroamento natural na idéia romana de imperium.



sábado, 19 de abril de 2025

O Homem de Ordem no Chile - Ricardo Geraci

 

 A vida e a obra de Diego Portales são tão ricas que os resumos costumam ser injustos quando se trata desse tipo de personagem. A pergunta que precede o título é apenas uma forma de nos introduzir ao exercício das comparações saudáveis, aproximando dados que nos permitam avaliar e comparar, neste caso, Portales com a figura de Rosas.

Diego Portales nasceu em 16 de junho de 1793 em Santiago do Chile (no mesmo ano que Rosas).

Pertencente à aristocracia crioula chilena, foi um dos 23 filhos de José Santiago Portales Larraín (diretor da Casa da Moeda Real) e María Encarnación Palazuelos Acevedo, ambos fervorosos patriotas. Após a batalha de Rancagua (1814), os realistas deportaram José Santiago para Juan Fernández, e María Encarnación foi internada num convento.

Com um perfil aristocrático, manteve-se um tanto à margem das lutas pela independência e começou a estudar humanidades em 1813. Estudou Direito a pedido do pai, mas não concluiu, pois ingressou na Casa da Moeda como ensaiador de metais.

Casou-se com sua prima Josefa Portales y Larraín em 1818 e, com a morte dela e de seu filho em 1821, entrou num período de "delírios místicos" que o ligariam ao mundo da fé e a uma defesa do catolicismo que o marcaria por toda a vida.

Associou-se ao comerciante José Manuel Cea após se estabelecer em Lima. De todo modo, o pensamento político de Portales começa a aparecer quando escreve a seu amigo e sócio Cea sobre o Chile, em março de 1822, de Lima:

 “A mim as coisas políticas não interessam, mas como bom cidadão posso opinar com toda liberdade e até censurar os atos do Governo. A Democracia, que tanto apregoam os iludidos, é um absurdo em países como os americanos, cheios de vícios e onde os cidadãos carecem de toda virtude, como é necessário para estabelecer uma verdadeira República. A Monarquia também não é o ideal americano: saímos de uma terrível para voltar a outra, e o que ganhamos com isso? A República é o sistema que deve ser adotado; mas sabe como a entendo para estes países? Um Governo forte e centralizador, cujos homens sejam verdadeiros modelos de virtude e patriotismo, para assim endireitar os cidadãos no caminho da ordem e das virtudes. Quando estiverem moralizados, venha então o governo plenamente liberal, livre e cheio de ideais, com participação de todos os cidadãos. É isso o que penso, e todo homem de critério mediano pensará o mesmo.”

Isso não pode ser tomado como um pensamento definitivo que define Portales. Mesmo com as mudanças naturais de pensamento que nos afetam e nos melhoram com o tempo, aquilo que Portales pensava em 1822 ele colocou em prática quando ocupou diferentes cargos de grande importância. Deve-se considerar o período de 1830-1837.

Foi Ministro interino da Guerra e da Marinha, depois Ministro do Interior, e recusou a candidatura à Vice-presidência. Entre agosto de 1831 e setembro de 1835, Diego Portales ficou fora de qualquer cargo ministerial, mas ainda assim era constantemente consultado. Tornou-se uma referência por seus negócios com o tabaco (foi o líder que sindicalizou os "estanqueros") e por sua necessidade declarada de ordem e estabilidade para concretizar um modelo produtivo.

Foi um homem de princípios democráticos, embora acreditasse que a melhor forma de impor uma ordem que conduzisse à apropriação civil dos hábitos democráticos era através de um sistema autoritário, considerando as desestabilizações causadas por malfeitores e o contexto idiossincrático do povo chileno.

Defendia um governo centralizado forte e representativo, que zelasse pelos valores morais, cristãos e humanos, constantemente ameaçados pelas ações dos "homens das intrigas" (como as logias de Buenos Aires e Montevidéu). Sua inclinação ao que os liberais chamam de "autoritarismo" deveu-se às circunstâncias políticas que atrasavam a ordem e o progresso.


Acreditava que o liberalismo, com sua carga filosófica positivista, poderia ser muito útil ao país, desde que se alcançasse uma verdadeira estabilidade.

Há semelhanças com Rosas no uso de certa severidade para fazer respeitar o governo diante do perigo da anarquia. Há também coincidência na necessidade de estabelecer uma base sólida, com modelos morais e empíricos claros, para uma nação em desenvolvimento e em contexto adverso. A consciência de incorporar hábitos os torna comparáveis.

Cientes de que os processos se tornavam danosos e obsoletos quando se falava em liberdades filosóficas em povos ainda sem consciência nacional, esses homens foram práticos e pragmáticos em toda a extensão da palavra.

Para continuar nessa linha comparativa, cito Ana Henríquez, Socialização do Ideário Político de Diego Portales no Araucano: Consolidação da Ordem e da Tranquilidade a partir de um Governo forte e autoritário:

 

Pragmatismo de Diego Portales

Diego Portales não desprezava por si só o ideal democrático, mas segundo sua concepção, no Chile ainda não existiam as condições necessárias para aplicá-lo em todas as suas manifestações. Consciente da realidade envolvente, que abrange tanto o contexto político chileno quanto as características da identidade dos chilenos, propõe como necessidade básica organizar a república a partir de bases sólidas que permitam instaurar a ordem e a estabilidade, com uma República forte, centralizada e autoritária. Como ideia, projeto ou simples opinião, esse pensamento está claramente delineado na famosa carta que Portales escreve a seu amigo e sócio José Manuel Cea, em março de 1822.


A GUERRA UNIDA DE CHILE E ARGENTINA CONTRA O MARECHAL SANTA CRUZ


Santa Cruz foi um homem com desejo de poder, que não hesitou em "se apoiar" na França para construir sua liderança na região do altiplano com uma colaboração aberta e nada disfarçada com o país europeu, de claros interesses político-econômico-coloniais na América. A França de Luís Felipe tinha no líder da Confederação Peruano-Boliviana um aliado. Desde 1833, Santa Cruz provocava a Confederação Argentina ao não admitir um embaixador argentino. Em 1836, tentou de toda forma atacar o Chile e a Argentina. Em 1837 começa um conflito, no qual o caudilho tucumano Alejandro Heredia, homem de Rosas, confronta abertamente Santa Cruz. Os resultados de Heredia não são os melhores, mas anteriormente Portales já havia enfrentado e desestabilizado Santa Cruz. O "Cholo" foi considerado entre os governos chileno e argentino um dos inimigos mais perigosos da região.

Na Argentina, havia um modo de agir muito parecido com o usado por Santa Cruz para gerar divisões ou conseguir apoio de tropas estrangeiras a fim de levar a cabo seus objetivos. Prometer terras públicas ou privadas ao invasor como pagamento pelo apoio militar e logístico era sua arma de sedução preferida.

Por isso, esses homens nacionalistas e americanistas, dignos herdeiros de San Martín, lutaram contra a tirania estrangeira e local – entre muitas outras durante o século XIX – do Marechal Andrés de Santa Cruz, unindo, num momento conturbado da história, dois povos irmãos contra o colonialismo.

Diego Portales entendeu – além de suas concepções conservadoras – que toda ação, por mais dura que fosse, tinha como fim a defesa da nação frente às desintegrações e à tutela estrangeira que os pensadores idealistas ou utópicos viam como único modo de organização. O conflito com Santa Cruz causou desânimo em parte das tropas chilenas, influenciadas por oficiais de alto escalão que viam o conflito como sem sentido.

Foi assim que lhe armaram uma armadilha em 3 de junho de 1837, quando foi chamado a Quillota, preso enquanto inspecionava as tropas, detido pessoalmente pelo coronel José Antonio Vidaurre.

Três dias depois, foi levado acorrentado por Santiago Florín (capitão e enteado de Vidaurre) a um lugar chamado Cabritería (Valparaíso), onde sua morte se tornou um ato horrendo. Atiraram-lhe no osso zigomático esquerdo, e quando tentou desviar o fuzil com a mão, o disparo decepou seu polegar e o projétil entrou pelo rosto. Não morreu imediatamente, e conseguiu denunciar a traição que estava sendo cometida. Diante do silêncio dos soldados por alguns segundos, foi morto com trinta baionetadas.

Portales foi um homem brilhante do Chile; uma figura nacional e americanista; um constituinte da base social, econômica e jurídica do país. Um homem de ordem e ação, patriota que colocava sua fortuna a serviço do país sem pedir nada em troca. Avesso a títulos ou honrarias, soube trilhar o sofrimento injusto dos heróis de nossa América, que pereceram com o infortúnio de serem lembrados apenas em nomes de praças ou cidades.

Como curiosidade contemporânea, durante o golpe militar de Pinochet houve diversas ações militares na capital e periferia, e uma bala de fuzil atingiu o rosto da estátua de Diego Portales na Plaza de la Constitución, provocando uma trágica coincidência própria da ironia histórica.

Por outro lado, os restos do herói andino (descobertos em 2005) foram identificados graças ao orifício de saída da bala no crânio.

Sua história é comparável à de Juan Manuel de Rosas, desde que nos atentemos aos modos como esses homens conceberam soluções para cenários que mergulhavam a pátria no atraso e na fraqueza institucional, que necessitavam ao menos de um mínimo de ordem para sobreviver.

Onde não havia lei, a anarquia devorava povoados inteiros, saqueados por malocas e contrabandistas, entre tantos outros males. Portales estabeleceu bases jurídicas com a convicção de impor a ideia da igualdade dos homens perante a lei. Foi o homem dos "bastidores" da política chilena, mas extremamente influente na formação do Estado andino.

Diante da decadência do princípio de autoridade, Portales se pronunciou a favor de uma nova fonte de legitimidade. Governantes, governados, civis e militares deviam submeter-se com obediência e lealdade a uma entidade abstrata e não a uma pessoa. Por isso, teve uma grande participação na Constituição de 1833 (um dos vários modelos constitucionais do Chile).

Como conclusão final, para esse homem prático, alcançar a Carta Magna significava ter alcançado a paz e a estabilidade em todas as esferas. O Chile é unitário e centralizador devido à sua extensão territorial e à localização de seus povoados e cidades. A esse respeito, é Diego Portales quem deixa seu testemunho, tão claro e descritivo, sem necessidade dos grandes e eloquentes monólogos dos burocratas.

sábado, 12 de abril de 2025

Nada é Meu - Giovanni Papini


maior problema do homem, como das nações, é a independência. Pode ser resolvido? O que possuo parece meu, mas sou sempre possuído pelo que tenho. A única propriedade indiscutível devia ser o Eu, e contudo, bem aquilatando - onde o resíduo absoluto, que não depende de ninguém? 


Os outros participam, ausentes ou presentes, da nossa vida interior e exterior. Não há forma de salvar-se. Mesmo na solidão perfeita, sinto-me, com espanto, átomo de um monte, célula de uma colônia, gota de um mar. Há, no meu espírito e na minha carne, a herança dos mortos; o meu pensamento é devedor dos defuntos e dos vivos; a minha conduta é guiada, mesmo contra a minha vontade, por seres que não conheço e que desprezo. 


Tudo o que sei, aprendi dos outros. Qualquer coisa que adquira, é obra de outros e - que importa a tenha pago? Sem o operário, sem o artesão sem o artista, eu estaria mais nu do que Caliban, ou do que Robinson. Se me quero mover, tenho necessidade de máquinas não fabricadas por mim e guiadas por mãos que não são minhas. Vejo-me obrigado a falar uma língua que não inventei; e os que vieram antes me impõem, sem que me aperceba, os seus gostos os seus sentimentos, os seus preconceitos. 


Se desmonto o meu Eu pedaço a pedaço encontro sempre fragmentos que procedem de fora; podia opor, em cada um, uma etiqueta de origem. Isto é de minha mãe, isto do meu primeiro amigo, isto de Emerson, isto de Rousseau, isto de Stirner. Se realizo a fundo o inventário das apropriações, o Eu se converte em uma forma vazia, em uma palavra sem sentido próprio.


Pertenço a uma classe, a um povo, a uma raça; não consigo nunca evadir-me, faça o que fizer, de certos limites que não foram traçados por mim. Cada ideia é um eco; cada ato um plágio. Posso tirar os homens da minha presença, mas uma grande parte deles continuará vivendo, invisível, na minha solidão. 


Se tenho criados, devo suportá-los e obedece-los; se tenho amigos, tolerá-los e servi-los, e os dinheiro querem ser guardados, cultivados, protegidos, defendidos. Poder equivale a escravidão. Nada, em realidade, me pertence. As poucas alegrias que desfruto, devo-as a inspiração e ao trabalho de homens que já não existem ou que nunca vi. Sei o que recebi mas ignoro que mo deu. 


Consegui reunir alguns milhares de milhões. Não o teria podido fazer se milhões de homens não houvessem trabalhado comigo, se milhões de homens não tivessem tido a necessidade daquilo que eu lhes podia vender, se milhões de homens não houvessem inventado as formulas, as máquinas, as regras sobre as quais se funda a vida econômica na terra. Abandonado a mim mesmo, eu teria sido um selvagem, um comedor de raízes e de cachorros mortos. 


Onde, pois, o núcleo profundo e autônomo, de que nenhum outro participa, que não foi gerado por nenhum outro e que se possa verdadeiramente chamar meu? Serei, em realidade, um coágulo de dívidas, a escrava molécula de um corpo gigantesco? E a unica coisa que acreditamos verdadeiramente nossa - o Eu - é, talvez, como tudo o mais, um simples reflexo, uma alucinação do orgulho?

sábado, 5 de abril de 2025

A reencarnação para Julius Evola

 


Evola, ao contrário de Guénon, diz que as crenças reencarnacionistas, mesmo em suas manifestações mais grosseiras, existiram em diferentes graus também na antiguidade (no que se chama início da Kali-Yuga), e que, a inspiração teosófica veio dessas fontes mais exotéricas. Concorda com Guénon em que são doutrinas externas ou mais ou menos popularescas:

“[...] O teosofismo se jacta de ter chamado a atenção do Ocidente sobre este outro 'ensinamento da sabedoria antiga'. Na realidade, dada a limitação de horizontes dos homens modernos, para os quais a existência é o princípio e o fim de tudo, não vendo nada antes nem depois dela senão vagas ideias religiosas sobre além, que, para eles não significam nada de vital; suscitar o sentido de 'vir de longe', de ter vivido muitas outras vidas e muitas outras mortes e de ter a possibilidade de proceder ainda de um mundo ou de outro, além da queda deste corpo, seria certamente um mérito. O mal está em que, no teosofismo tudo se reduz a uma série monótona de existências do mesmo tipo, quer dizer, terrena, [1] separada por intervalos de corporeidade mais o menos atenuada." (R.M.E.C. cap. IV)


E em obra mais tardia diz:


“Podemos brevemente lembrar que o Oriente, desde longa data, tem conhecimento de teorias como a da reencarnação, ao passo que mais recentemente o Ocidente tem professado quase exclusivamente a crença na singularidade da vida individual. O fato, por si mesmo, não é uma causa, mas consequência ou índice barométrico da crescente involução que ocorre durante a idade obscura (Kali-Yuga) a que eu me refiro com frequência. Essas teorias orientais contém ainda um eco do estado primordial no qual a humanidade ancestral já viveu. Nesse estado, a sede do corpo sutil não estava totalmente obstruída, e a humanidade ainda tinha um sentimento da ‘consciência samsárica’ conectado a essa sede. Esse conhecimento foi perdido com o passar do tempo porque o corpo humano se tornou cada vez mais físico. Naturalmente, como eu já disse repetidas vezes, a crença na reencarnação é popularesca e de alguma forma supersticiosa uma vez que essa noção expõe uma série de encarnações terrestres de uma entidade única, e deveria ser rejeitada pois carece base sólida ou fundamentos tradicionais.” (Y.P. cap. X)


E ainda em outra obra:


"O que continuamente emerge em várias formas nas tradições antigas é o ensinamento de que no homem, além do corpo físico, há essencialmente três entidades ou princípios, cada um dotado de seu próprio caráter e destino. O primeiro princípio corresponde ao 'Eu' consciente típico do estado de vigília, que surgiu junto com o corpo e foi formado junto com seu desenvolvimento biológico; essa é a personalidade comum. O segundo princípio era chamado de 'demônio', 'manes', 'lar' ou mesmo 'duplo'. O terceiro e último princípio corresponde ao que procede da primeira entidade após a morte; para a maioria das pessoas , é a 'sombra'. Enquanto a pessoa pertencer à 'natureza', o fundamento último de um ser humano é o daemon ou 'demônio' (δαίμων em grego); nesse contexto o termo não tem a conotação má que lhe foi conferida pelo cristianismo. Quando um homem é considerado desde o ponto de vista naturalístico, o demônio poderia ser definido como uma força profunda que originalmente produziu a consciência na forma finita que é o corpo no qual ele vive durante sua residência no mundo visível. Essa força, no fim das contas, permanece 'por trás' do indivíduo, nas dimensões pré-conscientes e subconscientes, como o fundamento dos processos orgânicos e as relações sutis com o ambiente, com outros seres e com o passado e o futuro.  Essas relações normalmente escapam a qualquer percepção direta." (R.C.M.M cap.VIII)

Assim, essas doutrinas teriam emergido, por um lado, das cosmovisões de raças pré-arianas que se infiltraram lentamente nas civilizações de natureza mais solar [3], e por outro lado, pela diminuição do escopo da consciência da humana, o que ele entende como sintoma de 'doença espiritual'. Essa nova perspectiva de consciência, sob a qual inclusive nasceram as tradições como o budismo, por exemplo, exige o estabelecimento do homem no que se chama ‘consciência samsárica’.  Portanto, distinguir-se-iam distinguir três momentos de consciência ou de ‘luminosidade’ da percepção humana sobre a totalidade e que dão origem a diferentes doutrinas; uma fase inicial, representada pela consciência divina plena é a que está presente, por exemplo, nos samhitas védicos, uma segunda fase é anunciada pelos upanishades e pela doutrina budista, que ele chama de consciência samsárica, e por fim o estabelecimento concreto da visão da humanidade na vida e na individualidade terrestre, característica por exemplo das religiões como o Islam e o Cristianismo, que se dirigem meramente à salvação individual[4].


Nos hinos védicos, de fato, o que se registra é oposição pura entre mortalidade e a imortalidade, não havendo traços de qualquer doutrina de renascimento ou de 'karma' perfeitamente delineada. Evola observa que nessa fase não há traços tampouco do significado posterior que passou a ter Yama como sendo um deus da morte e dos infernos; ao invés disso, nesse período inicial, ele retém os contornos do seu equivalente indo-ariano, Yima, o deus sol da idade primordial. Yama é o primeiro dos mortais, uma vez que ele ‘encontrou primeiro a estrada para o além’; assim, o ‘outro mundo’ segundo os védicos, é, em grande medida, atrelado à pura reintegração ao estado primordial. 


Os ‘germes da decadência’ teriam surgido no período pós-védico, ou seja, por volta do século VI A.C. e já haviam se tornado bem estabelecidos e desenvolvidos no tempo do Buda. A reação a essa decadência resultou, por um lado, no surgimento do ‘demônio da especulação racional' sobre aquilo que deveria ter permanecido doutrina secreta (rahasya) dando origem à expressão upanishádica tal qual a conhecemos e, por outro lado, vemos nesse período as deidades védicas, que inicialmente tinham um apelo esotérico, de estados de consciência, serem transformadas em divindades de culto sentimental e popular, numa profusão de seitas e teorias, caindo muitas vezes em panteísmo [5]. 


Além disso, as supostas invasões não-arianas parecem ter contribuído de forma significativa para o estabelecimento mais firme da doutrina da reencarnação em suas formas ainda mais grosseiras, rompendo de forma brusca com a visão ‘olímpica’ dos arianos e substituindo-a por ajustamentos próprios de raças ‘telúricas e matriarcais’:

“A reencarnação, de fato, é concebível somente para aquele que se sente ‘filho da terra’, ou seja, quem não tem conhecimento de uma realidade que transcende à ordem naturalista, estando, portanto, preso à divindade feminina e maternal, encontrada tanto no mundo mediterrâneo pré-ariano como nas civilizações hindus pré-arianas como os dravidianos e os cossalianos. O indivíduo, quando morre, deve retornar para a fonte em cuja lapidação está seu ser efêmero, somente para surgir em verdades terrestres renovadas, num ciclo inescapável e interminável. Esse é o sentido último da teoria da reencarnação, teoria que começa a se infiltrar logo no período das especulações upanishádicas; isso gradualmente dá espaço a formas mistas que podemos usar como medida para a mudança na consciência ariana original à qual nos referimos.”  (D.D. cap. II)

A consciência samsárica


Evola diz diversas vezes que, de fato, a reencarnação é relativamente válida, especialmente para os homens dos dias de hoje que estão submersos na consciência samsárica:

“[...] em nossos dias, o princípio e o fim da existência de grande parte dos homens se esgota num modo de vida semelhante, e o caso da ‘libertação’ se apresenta cada vez mais como uma anomalia, de forma que é possível dizer que, para a humanidade do período atual, a reencarnação no sentido de uma reprodução terrestre perene tem uma certa margem de verdade” uma vez que “a reencarnação é uma ideia justa, se se refere somente a aquele ente irracional que, destruído o corpo, em seu desejo constante e insaciável de vida, passa a outros corpos, nunca elevando-se a um plano superior”. (R.M.E.C. cap. IV)

Ou seja, parece que, estando toda nossa humanidade dentro dos pontos cegos desses círculos de consciência inferiores, normalizados e solidificados tanto pelo obscurecimento cíclico como pelo predomínio da visão das raças telúricas, é só a partir da aceitação desse ponto de vista que é possível enxergar as coisas apropriadamente:

“Chegamos então ao que chamamos de consciência samsárica que é o fundamento da perspectiva de vida do budismo: o conhecimento secreto confiado em privado pelo sábio Yajñavalkya ao rei Artabhaga, é que depois da morte os elementos individuais do homem se dissolvem nos elementos cósmicos correspondentes, incluindo o Âtman, que retorna ao ‘éter’, e que o que permanece é somente o karma, isso é, a ação, a fumaça impessoal, atrelada à vida de um ser [...]” (D.D. cap. II)

Para a visão aristocrática adotada por Évola [6], a própria crença de que todas as 'almas' indiscriminadamente fossem imortais lhe parecia inaceitável como proposta de via ou perspectiva: a verdadeira imortalidade, dizia ele, era a participação na natureza olímpica de um deus, e não a mera 'sobrevivência'. O kshátriya aceita e coloca-se, portanto, dentro da visão samsárica (diferentemente do vedântico) e consegue visualizar os dois caminhos: um é o caminho dos deuses, também conhecido como caminho solar, ou caminho de Zeus, que leva à morada luminosa dos imortais, representada de maneiras diversas como altura, céu, ou uma ilha do Valhala nórdico ou a “Morada do Sol” dos incas, “reservado a reis, heróis e nobres”, o outro caminho é percorrido por aqueles que: 

“[...] não sobrevivem de maneira real, e que vagarosamente, contudo inexoravelmente são dissolvidos em suas castas originais, nos ‘totens’ que, diferentemente dos indivíduos, nunca morrem; essa é a vida do Hades, dos infernos, do Niflheim, das divindades ctônicas.”  (R.C.M.M. cap.VIII)

O totem ou a 'matriz ancestral reincarnante'


Essa noção de totem, o animal ou símbolo que rege geneticamente um clã, mereceria especial atenção de Evola em suas relações com o chamado 'duplo':

"Esse 'duplo' tem sido frequentemente associado ao ancestral primordial ou ao totem concebido como a alma e a vida unitária que gera uma casta, a família, um clã ou uma tribo, e portanto, tem um sentido mais amplo do que o oferecido por certas escolas de etnologia contemporâneas. Os indivíduos de um grupo aparecem como várias encarnações ou emanações desse demônio ou totem, que é o 'espírito' pulsando em seu sangue; eles vivem um no outro reciprocamente, ainda que ele as transcenda, assim como a matriz transcende as formas particulares que produz a partir de sua própria substância. Na tradição o demônio corresponde ao princípio interno do homem chamado linga-sharîra. A palavra 'linga' contém a ideia de um poder gerador; daí, a possível derivação de 'genius' a partir de 'genere', que significa agir no sentido de procriar e a crença romana e grega de que o 'genius' ou demônio é a mesma força procriativa sem a qual a família se extinguiria. É também muito significante que os totens tem sido frequentemente associados com as 'almas' de espécies animais escolhidas, e que especialmente a cobra, um animal especialmente telúrico, tem sido associada no mundo clássico com a ideia de demônio ou gênio. Essas duas situações dão testemunha do fato de que em sua natureza imediata essa força é essencialmente sub-pessoal, e pertence à natureza e ao mundo infernal. Assim, de acordo com o simbolismo da tradição romana, a sede dos 'lares' é no subsolo; estão sob os cuidados do princípio feminino, Mania, que é a 'Mater Larum' [7]." (R.C.M.M., Cap. VIII) 

A origem do samksaras ou 'impressões ancestrais'

“Qual é, então, a origem dos samskaras? [8] Essa é uma questão complexa, e só podemos responde-la recorrendo à doutrina das ‘heranças múltiplas’. Entre várias crenças populares do hinduísmo, encontramos uma explicação baseada na ideia de reencarnação, que deveria ser aceita com a devida cautela. Dizem que os samksaras, que são os elementos constituintes do ser finito dotado de corpo, mente, tendências habituais e experiência são efeitos e consequência de existências prévias, que por sua vez são determinadas pelo karma. Isso, na verdade, não resolve o problema, mas simplesmente o reformula em termos diferentes. Se para poder explicar os samskaras que estão em funcionamento na existência presente nós temos que nos remeter às atividades realizadas em existências anteriores, o problema só aumenta. Para explicar por que essas atividades ocorreram, teríamos que regredir mais ainda, para uma existência anterior e assim por diante, ad infinitum. Meu argumento é que, no fim das contas, a série deve ser interrompida e ser explicada em termos de um ato original de auto-determinação. Qual é a natureza dessa ato? Essa é uma questão aberta. A resposta não pode ser localizada no tempo e no espaço, uma vez que nessas categorias, não há continuidade entre as várias manifestações de uma consciência única, ou entre múltiplas existências como sustenta o mito reencarnacionista. A continuidade deve ser encontrada somente no plano sutil, vital (prânico) e no poder da vida, que não é nem dependente de um único corpo e nem exaurida nele. (Y.P. cap. IV)

O indivíduo individuante 


Na sua exposição sobre a doutrina tantrista dos tattvas [9], Evola, encontra no nível do 'buddhi', que corresponderia ao 'nous' ou 'intelecto', a intersecção entre o indivíduo samsárico e a causalidade supra-individual:

“[Buddhi é] o princípio de toda individuação que é livre de toda forma particular de existência condicionada. Nesse nível a consciência individual aparece como uma reflexão samsárica de uma consciência superior. É por isso que o samkhya considerava o buddhi como a intersecção dos elementos do purusha e prakriti. A função desse tattva consiste em agir como um princípio intermediário entre as dimensões individual e supraindividual. Uma vez que o buddhi se situa num plano superior ao da individuação, a continuidade entre as formas e os estados individuais pode, portanto, ser estabelecida [10]. Essa continuidade, contudo, não pode ser vista desde uma perspectiva daqueles que se identificam com esses estados e que estão sendo varridos pela corrente. O fato de que essa continuidade não possa ser vista pode até mesmo se referir, em certo nível, a várias manifestações do Eu assumindo a forma de vidas não relacionadas. Não esqueçamos que a crença em uma sequência de existências é um princípio cardeal da crença popular da reencarnação. No que diz respeito à consciência individual, que é limitada a apenas uma vida, o ‘buddhi’ é também chamado de ‘mahat’, o ‘grande princípio’. No nível da psicologia individual, cada decisão, deliberação, e determinação e determinada por ele. O buddhi age até mesmo nos aspectos volicionais e decisivos da vida interna.” (Y.P. cap. IV) 


E ainda:

"Num grau superior, ela [a continuação entre as existências] existe no nível do buddhi-tattva, o ‘indivíduo-individuante’, cuja natureza consiste na formatação da realidade. Deve-se pensar que no nível mais alto dos tattvas impuros, ocorre uma inferência nos seguintes termos: a auto-determinação pura, que é uma ‘fatia’ de planos superiores, procede da esfera dos tattvas puros e a partir do corpo causal, que então se traduz no ato do ‘buddhi’. Não há explicação para essa determinação, uma vez que ela ocorre no domínio onde a suprema razão para atuação reside no ato mesmo, onde as causas não são determinadas por outras causas , e onde as formas são manifestadas como estágios do que é chamado de ação da ‘Shakti’ ou Lîlâ. Nesses planos superiores de existência (prajña) não há causa antecedente e nem mesmo samksaras. Os samksaras acabam por serem apanhados num estágio posterior, como resultado de uma eleição, coalescência, e apropriação que se segue à imersão na correntes samsárica. Essa corrente inclui as formas pré-determinadas e vários heranças (sejam biológicas ou prânicas), que se referem a elementos anteriores, sejam conectados ou não. Nesse sentido, os samskaras realmente existem no corpo sutil no qual o corpo causal se manifesta. Eles são também responsáveis para oferecer uma direção tanto para a ação seletiva do manas, através de seus órgãos, como para a vida à qual dá suporte, nutre e modela a forma física. De alguma forma, as antigas noções de ‘demônio’ e ‘gênio’ podem ser reduzidas ao corpo de vida informado por um grupo especial de samksaras, que, através do buddhi, dá vida à imagem samsárica do Shiva imóvel. Portanto, os samskaras não deveriam ser confundidos com o núcleo real da personalidade, que a partir do nível de buddhi para cima está fora das condições para as quais as existências prévias ocorreram. Isso contribui para a desmitologizar a crença popular na reencarnação, que não é parte de ensinamentos esotéricos, independentemente do alguns pensem.” (Y.P. cap. IV) 

Por fim:

“Uma continuidade real é concebida somente no nível dos corpos causal e sutil, uma vez que esses assentos são superiores a toda individuação e produção e não estão limitados a apenas uma vida. No nível do corpo sutil o que emerge é a ‘consciência samsárica’, ou melhor a consciência de ser levado por uma corrente na qual uma existência particular representa um vórtex particular .

No nível do corpo causal, a consciência se estende verticalmente aos estados múltiplos do ser, até o ponto onde não há mudança ou vir-a-ser.  (Y.P. cap. X)

A via heroica e o arbítrio sobre a outra vida


O verdadeiro ‘livre-arbítrio’ ou ao menos o exercício dessa faculdade, parece ser próprio do ‘vira’ ou ‘heroi’. Somente a esse cabia realmente a sobrevivência após a morte:

“[...] Somente o tantrismo formulou uma 'ciência da morte' realmente e enfatizou a noção de 'liberdade de escolha' em relação ao nosso destino no outro mundo. Entretanto, esse princípio não se aplica à vasta maioria das pessoas, para quem a morte representa uma profunda crise. A mudança de estado correspondente a essa crise é experimentada pelas pessoas como algum tipo de desmaio ou então como se fossem atingidas de forma que ficassem inconscientes, de acordo com conexões quase mecânicas das causas e efeitos do karma (tudo o que se faz durante a existência terrestre tem repercussões de grande escopo). Essa conexão vai determinar a nova existência condicionada, completamente desvinculada das existências prévias, uma vez que não há uma continuidade de consciência realmente pessoal entre todas elas ('como uma chama acende outra chama')." (Y.P ap. I)

E também:

"[...] um dos possíveis significados do termo 'pashu' (animal), que se  refere ao ser humano condicionado normal -- é 'vítima sacrificial', um animal prestes a ser sacrificado. Isso nos traz novamente ao conceito de pitriyâna, que é um dos dois caminhos para o próximo mundo, considerada nas tradições hindus. Nesse caminho, que a maioria das pessoas são forçadas a atravessar [11]a morte liberta a personalidade para as forças ancestrais do clã de origem, da mesma forma que um animal é sacrificado aos deuses e se torna alimento para outras vidas. Portanto, a única coisa que continua a viver é o processo kármico mencionado.” (Y.P. ap. I)

Portanto

para Evola, a reencarnação é relativamente aceitável, ainda que se remeta sempre a um estado de consciência ou de percepção da totalidade característica da Kali-Yuga, que Evola chama de 'consciência samsárica'. Essas doutrinas existiram desde a antiguidade, e os movimentos modernos como teosofismo e kardecismo apenas teriam acrescentado notas sentimentais apropriadas à mentalidade moderna.  O aristocrata busca estabelecer-se dentro das vias disponíveis na consciência samsárica, particularmente representadas pelas doutrinas budistas, de que não há um 'eu transmigratório'.

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