sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Liberdade de... - Alexander Dugin

 


Todos os princípios da filosofia do liberalismo e o próprio nome “liberalismo” se baseiam na tese da “liberdade”. 

Ao mesmo tempo, os filósofos liberais (em particular Mill) enfatizam que a “liberdade” que eles defendem é uma liberdade estritamente negativa. Mais ainda, eles separam “liberdade de” e “liberdade para”, sugerindo usar para estas duas diferentes palavras em inglês: “liberty” e “freedom”. “Liberty” implica liberdade em relação a algo. É daqui que o nome “liberalismo” é derivado. Os liberais lutam por esta liberdade e insistem nela. Quanto à “liberdade para” – isto é, o sentido e objetivo da liberdade – aqui os liberais ficam em silêncio, reconhecendo que cada indivíduo pode por si mesmo encontrar um meio de aplicar sua liberdade, ou ele pode negligenciar completamente a busca por um meio de usá-la. Essa é uma questão de escolha privada, que não é discutida e que não possui valor político ou ideológico. Por outro lado, a “liberdade de” é definida precisamente e possui um caráter dogmático. Os liberais propõem a liberdade em relação a: 


O governo e seu controle sobre a economia, política e sociedade civil; 

• A igreja e seus dogmas; 

• Os sistemas de classe; 

• Qualquer forma de áreas comunais de responsabilidade da economia; 

• Qualquer tentativa de redistribuir com uma ou outra instituição governamental ou social os resultados do trabalho material ou imaterial (a fórmula do filósofo liberal Philip Nemo, um seguidor de Hayek: “A justiça social é profundamente imoral”); 

• As ligações étnicas;


Qualquer forma de identidade coletiva. 


Pode-se pensar que nós temos algum tipo de versão do anarquismo aqui, mas isso não é exatamente verdadeiro. Os anarquistas – ao menos aqueles como Proudhon – consideram como uma alternativa para o governo, o trabalho livre e comunal, com uma coletivização total de seus produtos e eles se pronunciam vigorosamente contra a propriedade privada, enquanto os liberais, por outro lado, veem no mercado e na sacralidade da propriedade privada um pacto para a realização de seu modelo socioeconômico ideal. Além disso, considerando teoricamente que o governo deve mais cedo ou mais tarde desaparecer, os liberais, por razões pragmáticas, apoiam o governo se ele for burguês-democrata, facilita o desenvolvimento do mercado, garante a segurança da “sociedade civil” e a proteção contra vizinhos agressivos, e afasta a “guerra de todos contra todos” (T. Hobbes). 


 Em tudo mais os liberais vão ainda mais longe, repudiando praticamente todas as instituições sociopolíticas, até a família e a diferenciação sexual. Nos casos extremos, os liberais apoiam não apenas a liberdade de aborto, mas até mesmo a liberdade de diferenciação sexual (apoiando os direitos de homossexuais, transexuais e daí em diante). A família, como outra forma de sociedade, é pensada por eles como sendo um objeto puramente contratual, como outras “empresas”, condicionada por acordos legais. Como um todo, os liberais insistem não apenas na liberdade em relação a tradição e a sacralidade (para mencionar formas prévias de sociedade tradicional), mas até mesmo na liberdade em relação a socialização e a redistribuição, nas quais as ideologias políticas de esquerda – socialistas e comunistas – insistem (para mencionar formas políticas que são contemporâneas do liberalismo ou pretendentes a seu trono)

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

GRU contra KGB - Alexander Dugin

 

Único entre os conspirólogos a realçar constantemente o carácter geopolítico da “conspiração mundial” ou, mais exactamente, as duas alternativas das “conspirações mundiais” (eurásica e atlantista), encontramos Jean Parvulesco, talentoso escritor, poeta e metafísico francês, autor de numerosos trabalhos literários e filosóficos.

Durante a sua longa vida, extremamente rica em acontecimentos, conviveu pessoalmente com numerosas figuras eminentes da história europeia e mundial, entre os quais os representantes da “história oculta e paralela” - místicos, maçons de primeiro plano, cabalistas, esotéricos, agentes secretos de diversos serviços especiais, ideólogos, políticos e artistas (nomeadamente foi amigo de Ezra Pound, Julius Evola, Arno Brecker, Otto Skorzeny, Pierre de Villemarest, Raymond Abellio, etc.).

Tendo ouvido falar da especifidade dos nossos estudos conspirológicos, Parvulesco forneceu-nos certos documentos classificados como estritamente confidenciais, que nos permitiram descobrir numerosos detalhes importantes da conspiração geopolítica planetária.

Os materiais que dizem respeito à actividade das organizações ocultas secretas da Rússia apresentam um particular interesse.

Na descrição que se segue, tentaremos expor os aspectos mais interessantes da concepção de Parvulesco.

A 24 de Fevereiro de 1989 em Lausanne, perante os membros do conselho de administração do misterioso Instituto de Estudos Metaestratégicos Especiais Atlantis, Jean Parvulesco apresentou um relatório sobre o curioso título de A Galáxia do GRU, subintitulado “A Missão Confidencial de Mikhaïl Gorbatchev, a URSS e o Porvir do Grande Continente Europeu”. Neste relatório - do qual Parvulesco nos transmitiu uma cópia - analisava o papel oculto do serviço de informações militar soviético chamado GRU (Glavnoé Razvedivatelnoié Upravlenié, Serviço de Informações Principal), e os laços do GRU com a ordem secreta da Eurásia. Como referência, Parvulesco escolheu o livro do especialista bem conhecido dos serviços especiais soviéticos, o famoso agente da contra-espionagem francesa e director do Centro de Documentação Europeu, Pierre de Villemarest, que em 1988 publicou em França o best-seller GRU, O Mais Secreto dos Serviços Soviéticos, 1918-1988.

O modelo conspirológico do próprio Villemarest pode resumir-se como se segue: “O KGB é uma continuação do partido, o GRU é uma extensão do exército”. Desde logo, por definição, o exército defende o Estado, o KGB defende o partido. O KGB é guiado pelo princípio “o patriotismo está ao serviço do comunismo”, enquanto que o exército é guiado pelo principio oposto “o comunismo está ao serviço do patriotismo”. A partir desta lógica de oposição entre GRU e KGB, na sua qualidade de mais secretos centros do poder bipolar na URSS (o exército e o partido), Villemarest construiu uma bem argumentada e fascinante narração da história do GRU.

O sentido secreto da história invisível da URSS, da Revolução de Outubro à Perestroika, deve ser procurado na rivalidade dos “vizinhos” - o GRU, o “Aquário” ou “Secção Militar 44.388” em Khodynka, e o KGB, o “serviço”, na Lubianka. Mas qual é a ligação entre estes serviços especiais rivais e as duas ordens geopolíticas planetárias, ainda mais secretas e ocultas que os serviços de informações mais secretos?

Segundo Parvulesco, a Ordem Eurásica esteve particularmente activa na Rússia no principio do século XX. Entre os seus representantes, contavam-se o Dr. Badmaiev de S.

Petersburgo, o Barão Ungern von Sternberg, os superiores escandinavos secretos de Rasputine (assinando as suas mensagens cifradas sob o pseudónimo de “Vert”) e muitas outras personagens menos conhecidas. É necessário igualmente realçar o papel particular do futuro marechal Mikhaïl Toukhatchevski que, segundo Parvulesco, foi iniciado na misteriosa Ordem Polar durante a sua estada no campo de prisioneiros alemão de Ingolstadt - onde, curiosamente, justamente no mesmo período de 1916-1918, encontramos outras figuras maiores da história moderna: o general de Gaulle, o general von Ludendorff e o futuro papa Pio XII, monsenhor Eugenio Pacelli.

Este grupo de místicos geopolíticos russos, passou mais tarde o testemunho ao regime bolchevique, mas sobretudo aos esotéricos de tendência continental agrupados no exército, nas suas estruturas, onde havia um número significativo de antigos oficiais do império que se tinham juntado às fileiras dos vermelhos para mudar a atitude niilista dos bolcheviques a longo prazo, e para criar a Grande Potência Continental utilizando os comunistas, pragmaticamente possuídos pela ideia messiânica.

O que importa é que entre os vermelhos haviam alguns agentes da Ordem Eurásica executando uma missão continental secreta (é curioso que o famoso bandido vermelho Kotovsky tenha sido um anarquista de esquerda, ocultista e místico, e que certas passagens particulares da sua biografia justifiquem a opinião de que no seu caso tenha tido contactos com a Ordem Eurásica).

Assim sendo, entre os eurásicos russos pré-revolucionários e pós-revolucionários, existiu uma continuidade.

A criação do Exército Vermelho deveu-se aos agentes da Eurásia; e a este respeito é curioso recordarmo-nos de um acontecimento histórico, a saber que vinte e sete dias após a criação do Quartel General do Exército Vermelho na Frente Leste (10 de Julho de 1918), uma equipa de tchekistas o tenha atacado liquidando todos os seus membros, incluindo o Comandante em Chefe.

A feroz guerra entre os “eurásicos vermelhos” do exército e os “atlantistas vermelhos” da Tcheka de Djerdjinski não parou um só minuto desde os primeiros dias da história soviética.

Mas a despeito das vítimas, os agentes da Ordem Eurásica entre os vermelhos não abandonaram a sua missão. Um triunfo dos eurásicos foi, em 1918, a criação do GRU no seio do Exército Vermelho, sob a direcção de Semion Ivanovitch Aralov, antigo oficial do império ligado às informações militares até 1917. Mais precisamente, Aralov era o chefe do departamento operacional do Vseroglavstab (Estado Maior Pan-Russo), cujo serviço de informações era uma das suas partes constitutivas. O particularismo da sua actividade, essa misteriosa imunidade, quase mítica, da qual este homem beneficiou toda a sua vida atravessando as “purgas” mais minuciosas (morreu de morte natural a 22 de Maio de 1969), e também outros detalhes da sua biografia levam-nos a ver em Aralov o homem da ordem continental.

Segundo Parvulesco, a fieira russa da Ordem Eurásica depois da revolução foi estabelecida no Exército Vermelho, mais precisamente, no seu departamento mais secreto: o GRU. Mas isto somente dizia respeito, é claro, aos eurásicos vermelhos.

Os eurásicos “brancos” na Europa juntaram-se geralmente aos nacionalistas alemães, encontramos representantes desta ordem na Abwehr. E mais tarde nas secções estrangeiras das SS e do SD (particularmente no SD, cujo chefe Heydrich era ele próprio um eurásico convicto, razão pela qual tombou vítima das intrigas do atlantista Canaris). A revolução dividiu os russos entre “vermelhos” e “brancos”, mas por detrás dessa divisão política formal havia uma misteriosa partição geopolítica diferente, entre as zonas de influência das duas ordens secretas - a atlântica e a eurásica. Na Rússia vermelha, os atlantistas estavam agrupados em volta da Tcheka e do partido, se bem que antes da nomeação de Khrushchev nenhum atlantista declarado tenha jamais ocupado o posto de secretário-geral (Lenine e Estaline eram eurásicos, ou pelo menos, estavam submetidos a uma forte influência por parte dos agentes da Ordem Eurásica).

Entre a imigração russa branca, os atlantistas não eram menos numerosos que na própria Rússia, e à parte dos espiões ingleses evidentes - de liberais tal como Kerenski e de outros democratas e sócio-democratas - mesmo na área da extrema-direita, dos monárquicos, o lobby atlantista era extremamente forte - pertencia-lhe mesmo um filósofo “de direita” como Berdiaev, e muitos outros (a esmagadora maioria dos emigrados russos que foram para os Estados Unidos estava ligada a esta tendência geopolítica). Num dado momento, no principio dos anos 30, a rede dos agentes do GRU na Europa e particularmente na Alemanha penetrou profundamente nas estruturas dos serviços de informação alemão e francês, tendo a rede do GRU levado a melhor sobre a rede dos agentes do KNVD e mais tarde do KGB. Os agentes do GRU penetraram antes de tudo nas estruturas do exército e por vezes a plataforma eurásica fez com que o pessoal do GRU e outros agentes secretos europeus não fossem tão inimigos, mas antes aliados, colaboradores, preparando secretamente (mesmo à revelia dos seus próprios governos) um novo projecto continental. Novamente aqui falamos não de agentes duplos, mas da convergência de interesses geopolíticos mais elevados.

Assim, na Alemanha, o GRU entrou em contacto com um certo Walter Nikolaï, chefe do “Gabinete para a Questão Judaica”. Graças a ele, o GRU teve acesso às mais altas esferas da direcção da Abwehr, das SS e do SD. A figura central desta rede era o próprio Martin Bormann (este facto foi bem conhecido pelos Aliados após as descobertas do Processo de Nuremberga, e muitos de entre eles estavam certos que Bormann após 1945 estava precisamente escondido na URSS. Tem-se por certo que o próprio Walter Nikolaï passou realmente para o lado russo em Maio de 1945).



sexta-feira, 15 de novembro de 2024

A Moralidade Política - Eduard Limonov

 


Quando estive preso, não exigi que outros sofressem ao mesmo tempo. Não exigi de meus jovens camaradas uma vida assexuada e ascética, fiquei feliz em saber que meus camaradas de partido ficaram bêbados no meu 60º aniversário na Central House of Writers quando eu estava na prisão, contando os tijolos na parede da prisão de Saratov's Central. Além disso, eu estava trabalhando em nome do partido quando estava na prisão. Escrevi oito livros, contrabandeei-os para fora da prisão, publiquei-os, ganhei o dinheiro e esse dinheiro foi gasto em necessidades do partido. Então, eu apoiei o partido mesmo quando estava na prisão. Todos no partido nacional-bolchevique sabem disso, meus camaradas me respeitam. Eu os respeito, não temos problemas em culpar uns aos outros, pois acredito que os bolcheviques do partido de Lenin não têm reclamações a fazer sobre o comportamento de Lenin. A política russa é uma ocupação perigosa, então a prisão deve ser um evento bastante comum na vida de um político russo radical. Não tenho sentimentos sobre a prisão, ou ser encarcerado, é o meu trabalho, é o trabalho dos meus camaradas do partido.

O político radical revolucionário não é um monge, a menos que se declare como tal. O político radical deve estar cercado de mulheres, vinho e coisas bonitas.

A única medida de moralidade para um político radical é a fidelidade à sua causa.

Viver uma vida ascética não é exigido pela moralidade radical. Ao contrário, são traços da moralidade burguesa. Além do ponto de vista hipócrita, o líder do partido é manipulador do destino dos membros do partido.

O político radical deve sorrir, ser bom amante e amigo. Ele não deve prestar atenção aos liberais. Sua moralidade é a moral do guerreiro e não a da mulher que grita.


quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A Terra - Darcy Ribeiro


 O Brasil, resultante de uma colonização presidida pelo sistema de fazendas, foi impregnado em cada uma de suas células com suas marcas distintivas. Desse modo, cada pessoa que exerce uma parcela de poder congruentemente com o sistema o faz no papel de agente da sua consolidação, contribuindo para mais perpetuá-lo. E, reciprocamente, cada pessoa que se rebela contra a ordem fazendeira, seja o camponês que invade terras alheias, o intelectual que estuda problemas sociais ou o político que luta pela reforma agrária, age como um subversivo, atraindo sobre si todo o peso da máquina oficial de repressão. Assim se vê que a ordem fazendeira e a ordem vigente constituem uma mesma ordem nacional, destinada a preservar o sistema a qualquer custo.

A camada dominante sente-se tão integrada no sistema que até aspira ser considerada generosa, altruística e civilizadora. Orgulha-se de haver instituído para com seus dependentes um tratamento temperado de autoridade e de amparo, de ter dignificado as relações de trabalho para com os servidores, que lhe devotam mais eloquente fidelidade, através do paternalismo e do compadrio, e, ainda, de exercer com sobranceria os superiores deveres da caridade cristã.

Para os que suportam o peso do sistema como sua força de trabalho, a visão é diferente. Em algum tempo remoto (ou ainda hoje em algumas comunidades mais isoladas), a ordem fazendeira pôde ser tida por aqueles que sujigavam como ordem natural, porque não sabiam de outra; e sagrada, porque representava o ônus de uma condenação divina que recaía sobre os pobres. Nessas condições de insciência era possível infundir expectativas congruentes de respeito recíproco entre as posições polares, mantida cada qual em seu papel. As relações sociais podiam mesmo assumir certa cordialidade sob o peso da opressão. Um senhor e seus peões podiam configurar uma constelação plausível, ele colocado no centro do sistema como o objeto da devoção e das esperanças de todos; os demais, na periferia, como seus braços e pernas adicionais, no cumprimento de todos os seus desígnios. Aqueles que não conseguiam introjetar essas atitudes prontamente se desajustavam, saindo a perambular de fazenda em fazenda ou encaminhando-se às cidades, quando não caíam na anomia ou no banditismo. Na maior parte das vezes, porém, o contexto sociocultural era suficientemente homogêneo para induzir os indivíduos à acomodação, só escapando delas as personalidades mais vigorosas que, por sua própria rebeldia, iam sendo excluídas das fazendas.

Assim se constituía uma base nas relações de trabalho dentro da fazenda para a ordem que estruturava a sociedade inteira. Os fazendeiros de cada região, vinculados pela vizinhança e pelo parentesco, formavam um grupo dominante solidamente irmanado, em cujo poderio, expresso em bens e em subordinados, se apoiavam os poderes públicos para a manutenção da ordem e de cujos familiares recrutavam os novos quadros de comando político. A fazenda era, pois, a célula elementar do sistema nacional, tanto econômico e social quanto político e militar.

A sociedade resultante dessa ordenação tem incapacidades insanáveis, dentre elas a de assegurar um padrão de vida mesmo modestamente satisfatório para a maioria da população nacional; a inviabilidade de instituir-se sob seu domínio uma vida democrática; a impossibilidade de alcançar um nível razoável de tecnificação das atividades produtivas e de promover grandes acumulações de capitais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma organização oligárquica que só se pode manter artificiosamente pela compressão das camadas majoritárias da população as quais condena ao atraso e à pobreza. Assim se compreende a coerência reacionária da política brasileira da Colônia ao Império e na República como uma imposição necessária dessa ordenação intrinsecamente antipopular e antidemocrática, assentada no monopólio da terra e da mão de obra por uma minoria.

Toda a história brasileira foi tecida com os fios desse instituto, que, nascendo da transplantação da sesmaria portuguesa para os desvãos brasileiros, ganhou coloridos próprios, variou de formas, como era inevitável num lapso de quatro séculos, mas se manteve fundamentalmente o mesmo.

O regime de sesmaria — concedida como um ato de graça pela Coroa, ou em seu nome, pelos agentes do poder real — prevaleceu até a Independência. Deu lugar, então, a uma legislação mais liberal de acesso à terra, com o regime de posse que se manteve por trinta anos, assegurando a propriedade da terra a quem a ocupasse e fizesse produzir e simplificando a legalização destas posses desde que fossem continuadas, mansas e pacíficas (R. C. Lima, 1935).

Essa orientação liberal coincide e se explica pela quadra de decadência que então atravessava a agricultura brasileira — o açúcar fora desde há muito desbancado dos mercados internacionais pela produção antilhana e as minas de ouro se haviam esgotado. A população dos antigos núcleos produtivos regredia a uma economia de subsistência, os mineradores dispersavam-se com seus escravos e os engenhos se fechavam sobre si mesmos para produzir tudo o que consumiam, a fim de reduzir seus custos. A população livre e pobre entrara a ocupar, então, as trevas vagas entre as sesmarias ou, além delas, a estruturar-se como sociedades caipiras. Muitos ricos marchavam também com sua escravaria e seu gado para abrir grandes fazendas autárquicas, instalando-se como ilhas no deserto já despovoado de índios. O valor venal da terra decaíra a níveis irrisórios e toda a riqueza passara a pautar-se pela posse de escravos e rebanhos. Mas o povo livre e pobre podia comer melhor e até aspirar a uma condição de independência e dignidade.

Começa a surgir, então, um novo produto-rei, o café, tão exigente de terras e de força de trabalho quanto o antigo engenho canavieiro. De terras, menos para usar do que para monopolizar, compelindo, assim, a mão de obra disponível a servi-lo. Cai, em consequência, o regime de posse para dar lugar à Lei de Terras,10 de 1850, reforçada e ratificada, desde então, por copiosíssima legislação que estatuía a compra como única forma de acesso à terra; criava um sistema cartorial de registro que tornaria quase impraticável a um lavrador pobre legalizar suas terras, e estipulava como valor de venda das glebas devolutas níveis de preço muito mais altos que os correntes para terras já apropriadas.

Assim se instituem como princípios ordenadores fundamentais da sociedade brasileira: a outorga de terras, em extensões incomensuráveis, não àqueles que as lavravam, mas a uma camada de contemplados, controladores das fontes do poder político; a garantia da legitimidade e da intocabilidade dos títulos de propriedade por todo um aparato judiciário e policial de repressão; o direito tranquilo de manter a terra improdutiva por força do instituto da propriedade; o controle da força de trabalho obrigada a engajar-se no sistema como único modo de sobreviver.

A República ratificaria toda essa legislação restritiva de uma forma ainda mais ardilosa. Primeiro, transferindo à autoridade estadual, ainda mais submissa ao poderio latifundiário, o domínio das terras devolutas. Segundo, instituindo formas de demarcação e de registro cartorial das propriedades que tornavam inviável a legitimação de posse ao pequeno lavrador. Terceiro, com a promulgação de um Código Civil que lançava sobre as costas da massa rural todo o peso da “liberdade de contrato” em nome das relações “igualitárias” com os proprietários.

Solitude - Mário Ferreira dos Santos

  O homem superior é um solitário. Na época atual do homem-massa, em que o gosto se generaliza num sentido de perspectiva comum, de anseios ...