quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A Terra - Darcy Ribeiro


 O Brasil, resultante de uma colonização presidida pelo sistema de fazendas, foi impregnado em cada uma de suas células com suas marcas distintivas. Desse modo, cada pessoa que exerce uma parcela de poder congruentemente com o sistema o faz no papel de agente da sua consolidação, contribuindo para mais perpetuá-lo. E, reciprocamente, cada pessoa que se rebela contra a ordem fazendeira, seja o camponês que invade terras alheias, o intelectual que estuda problemas sociais ou o político que luta pela reforma agrária, age como um subversivo, atraindo sobre si todo o peso da máquina oficial de repressão. Assim se vê que a ordem fazendeira e a ordem vigente constituem uma mesma ordem nacional, destinada a preservar o sistema a qualquer custo.

A camada dominante sente-se tão integrada no sistema que até aspira ser considerada generosa, altruística e civilizadora. Orgulha-se de haver instituído para com seus dependentes um tratamento temperado de autoridade e de amparo, de ter dignificado as relações de trabalho para com os servidores, que lhe devotam mais eloquente fidelidade, através do paternalismo e do compadrio, e, ainda, de exercer com sobranceria os superiores deveres da caridade cristã.

Para os que suportam o peso do sistema como sua força de trabalho, a visão é diferente. Em algum tempo remoto (ou ainda hoje em algumas comunidades mais isoladas), a ordem fazendeira pôde ser tida por aqueles que sujigavam como ordem natural, porque não sabiam de outra; e sagrada, porque representava o ônus de uma condenação divina que recaía sobre os pobres. Nessas condições de insciência era possível infundir expectativas congruentes de respeito recíproco entre as posições polares, mantida cada qual em seu papel. As relações sociais podiam mesmo assumir certa cordialidade sob o peso da opressão. Um senhor e seus peões podiam configurar uma constelação plausível, ele colocado no centro do sistema como o objeto da devoção e das esperanças de todos; os demais, na periferia, como seus braços e pernas adicionais, no cumprimento de todos os seus desígnios. Aqueles que não conseguiam introjetar essas atitudes prontamente se desajustavam, saindo a perambular de fazenda em fazenda ou encaminhando-se às cidades, quando não caíam na anomia ou no banditismo. Na maior parte das vezes, porém, o contexto sociocultural era suficientemente homogêneo para induzir os indivíduos à acomodação, só escapando delas as personalidades mais vigorosas que, por sua própria rebeldia, iam sendo excluídas das fazendas.

Assim se constituía uma base nas relações de trabalho dentro da fazenda para a ordem que estruturava a sociedade inteira. Os fazendeiros de cada região, vinculados pela vizinhança e pelo parentesco, formavam um grupo dominante solidamente irmanado, em cujo poderio, expresso em bens e em subordinados, se apoiavam os poderes públicos para a manutenção da ordem e de cujos familiares recrutavam os novos quadros de comando político. A fazenda era, pois, a célula elementar do sistema nacional, tanto econômico e social quanto político e militar.

A sociedade resultante dessa ordenação tem incapacidades insanáveis, dentre elas a de assegurar um padrão de vida mesmo modestamente satisfatório para a maioria da população nacional; a inviabilidade de instituir-se sob seu domínio uma vida democrática; a impossibilidade de alcançar um nível razoável de tecnificação das atividades produtivas e de promover grandes acumulações de capitais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma organização oligárquica que só se pode manter artificiosamente pela compressão das camadas majoritárias da população as quais condena ao atraso e à pobreza. Assim se compreende a coerência reacionária da política brasileira da Colônia ao Império e na República como uma imposição necessária dessa ordenação intrinsecamente antipopular e antidemocrática, assentada no monopólio da terra e da mão de obra por uma minoria.

Toda a história brasileira foi tecida com os fios desse instituto, que, nascendo da transplantação da sesmaria portuguesa para os desvãos brasileiros, ganhou coloridos próprios, variou de formas, como era inevitável num lapso de quatro séculos, mas se manteve fundamentalmente o mesmo.

O regime de sesmaria — concedida como um ato de graça pela Coroa, ou em seu nome, pelos agentes do poder real — prevaleceu até a Independência. Deu lugar, então, a uma legislação mais liberal de acesso à terra, com o regime de posse que se manteve por trinta anos, assegurando a propriedade da terra a quem a ocupasse e fizesse produzir e simplificando a legalização destas posses desde que fossem continuadas, mansas e pacíficas (R. C. Lima, 1935).

Essa orientação liberal coincide e se explica pela quadra de decadência que então atravessava a agricultura brasileira — o açúcar fora desde há muito desbancado dos mercados internacionais pela produção antilhana e as minas de ouro se haviam esgotado. A população dos antigos núcleos produtivos regredia a uma economia de subsistência, os mineradores dispersavam-se com seus escravos e os engenhos se fechavam sobre si mesmos para produzir tudo o que consumiam, a fim de reduzir seus custos. A população livre e pobre entrara a ocupar, então, as trevas vagas entre as sesmarias ou, além delas, a estruturar-se como sociedades caipiras. Muitos ricos marchavam também com sua escravaria e seu gado para abrir grandes fazendas autárquicas, instalando-se como ilhas no deserto já despovoado de índios. O valor venal da terra decaíra a níveis irrisórios e toda a riqueza passara a pautar-se pela posse de escravos e rebanhos. Mas o povo livre e pobre podia comer melhor e até aspirar a uma condição de independência e dignidade.

Começa a surgir, então, um novo produto-rei, o café, tão exigente de terras e de força de trabalho quanto o antigo engenho canavieiro. De terras, menos para usar do que para monopolizar, compelindo, assim, a mão de obra disponível a servi-lo. Cai, em consequência, o regime de posse para dar lugar à Lei de Terras,10 de 1850, reforçada e ratificada, desde então, por copiosíssima legislação que estatuía a compra como única forma de acesso à terra; criava um sistema cartorial de registro que tornaria quase impraticável a um lavrador pobre legalizar suas terras, e estipulava como valor de venda das glebas devolutas níveis de preço muito mais altos que os correntes para terras já apropriadas.

Assim se instituem como princípios ordenadores fundamentais da sociedade brasileira: a outorga de terras, em extensões incomensuráveis, não àqueles que as lavravam, mas a uma camada de contemplados, controladores das fontes do poder político; a garantia da legitimidade e da intocabilidade dos títulos de propriedade por todo um aparato judiciário e policial de repressão; o direito tranquilo de manter a terra improdutiva por força do instituto da propriedade; o controle da força de trabalho obrigada a engajar-se no sistema como único modo de sobreviver.

A República ratificaria toda essa legislação restritiva de uma forma ainda mais ardilosa. Primeiro, transferindo à autoridade estadual, ainda mais submissa ao poderio latifundiário, o domínio das terras devolutas. Segundo, instituindo formas de demarcação e de registro cartorial das propriedades que tornavam inviável a legitimação de posse ao pequeno lavrador. Terceiro, com a promulgação de um Código Civil que lançava sobre as costas da massa rural todo o peso da “liberdade de contrato” em nome das relações “igualitárias” com os proprietários.

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