Responderemos em primeiro lugar que o "mundo trabalhador" é uma criação totalmente artificial, devida à máquina e à vulgarização científica que a esta se liga; dito de outro modo, a máquina cria infalivelmente o tipo humano artificial que é o "proletário", ou antes, ela cria um "proletariado", pois se trata, em tal caso, essencialmente de uma coletividade quantitativa e não de uma "casta" natural, ou seja, tendo seu fu n damento em determinada natureza individual. Se se pudesse suprimir as máquinas e reintroduzir o antigo artesanato com todos os seus aspectos de arte e de dignidade, o "problema do trabalhador" deixaria de existir; isto é verdadeiro mesmo para as funções puramente servis ou os ofícios mais ou menos quantitativos, pela simples razão de que a máquina é in umana e anti-espiritual em si. A máquina mata, não somente a alma do trabalhador, mas a alma como tal, portanto também a do explorador: o par explorador-trabalhador é inseparável do maquinismo, pois o artesanato impede esta alternativa grosseira por sua própria qualidade humana e espiritual. O un iverso maquinista é acima de tudo o triunfo da ferragem pesada e dissimulada; é a vitória do metal sobre a madeira, da matéria sobre o homem, da astúcia sobre a inteligência;8 expressões tais como "massa", "bloco", "choque", tão fr eqüentes no vo c abulário do homem industrializado, são totalmente significativas para um mundo que está mais perto dos insetos do que dos humanos. Não há nada de surpreendente no fato de que o "mundo do trabalhador", com sua psicologia "maquinista-cienticista-materialista", seja particularmente impermeável às realidades espirituais, pois ele pressupõe uma "realidade ambiente" totalmente factícia: ele exige máquinas, portanto metal, bulício, forças ocultas e pérfidas, uma ambiência de pesadelo, do vaivém ininteligível, em uma palavra, uma vida de insetos na feiúra e na trivialidade; no interior de tal mundo, ou antes de tal "cenário", a realidade espiritual aparecerá como um ilusão patente ou um luxo desprezível. Em não importa qual ambiência tradicional, ao contrário, é o problematismo "trabalhador" - portanto maquinista - que não teria mais nenhuma força persuasiva; para torná-lo verossímil, é preciso portanto começar por criar um mundo de bastidores que lhe corresponda, e cujas formas mesmas sugerem a ausência de Deus; o Céu deve ser inverossímil, falar de Deus deve soar falso.9 Quando o trabalhador diz que não tem "tempo para rezar", ele não está muito errado, pois não faz senão exprimir assim tudo o que sua condição tem de inumano, ou digamos de "infra humano"; os antigos ofícios, por sua vez, eram eminentemente inteligíveis, e não privavam o homem de sua qualidade humana, a qual implica por definição a faculdade de pensar em Deus.
Alguns objetarão sem dúvida que a indústria é um "fato" e que é preciso aceitá-la como tal, como se esse caráter de fato tivesse primazia sobre a verdade; considera-se habitualmente como "coragem" e "realismo" o que é exatamente o contrário, ou seja:
porque ninguém pode impedir determinada calamidade, ela é chamada de "bem" e é glorificada a incapacidade de se lhe escapar. O erro torna-se verdade porque ele "existe", o que está bem de acordo com o "dinamismo" - e com o "existencialismo" -da mentalidade maquinista; tudo o que existe pela cegueira dos homens se chama "nosso tempo", com uma nuance de "imperativo categórico". É por demais evidente que a impossibilidade de escapar de um mal não impede que este seja o que ele é; para encontrar um remédio, se a ocasião se apresenta, é preciso considerar o mal independentemente de nossas chances de escapar a ele ou de nosso desejo de não o ver, pois um bem não poderia se produzir de encontro à verdade.
É um erro comum -e característico para a mentalidade "positiva" ou "existencialista" de nossa época - crer que a constatação de um fato depende do conhecimento das causas ou dos remédios, conforme o caso, como se o homem não tivesse o direito de ver o que ele não pode nem explicar nem modificar; chama-se "crítica estéril" à indicação de um mal e esquece-se que o primeiro passo para uma eventual cura é a constatação da doença. Seja como for, toda situação oferece a possibilidade, senão de uma solução objetiva, ao menos de uma reação subjetiva, de uma libertação pelo espírito; quem compreende a verdadeira natureza do maquinismo, escapará por isso mesmo das servidões psicológicas da máquina, o que já é muito. Dizemos isto sem nenhum "otimismo", e sem perder de vista que o mundo atual é um "mal necessário" cuja raíz metafísica está, em última análise, na infinitude do Possível divino.
Mas há outra objeção que é preciso levar em conta: alguns dirão que sempre houve máquinas e que as do século XIX são simplesmente mais perfeitas que as outras, mas esse é um erro radical que se encontra sempre, sob diversas formas; é uma falta de senso das "dimensões" ou, dito de outro modo, é não saber distinguir entre diferenças qualitativas ou eminentes e diferenças quantitativas ou acidentais. Um antigo tear, por exemplo, por mais perfeito que seja, é uma espécie de revelação e um símbolo cuja inteligibilidade permite à alma "respirar", enquanto que a máquina é propriamente "sufocante"; a gênese do tear está ligada à vida espiritual - o que se percebe, aliás, em sua qualidade estética -, enquanto uma máquina moderna pressupõe ao contrário um clima mental e um trabalho de investigação que são incompatíveis com a santidade, sem falar de seu aspecto de artrópodo gigante ou de caixa mágica, o qual também tem um valor de critério; um santo pode construir ou aperfeiçoar um moin h o d'água ou de vento, mas nenhum santo pode inventar uma máquina, precisamente porque o progresso técnico implica uma mentalidade contrária à espiritualidade, critério que aparece com uma evidência brutal, como dissemos, nas próprias formas das construções mecânicas.10 Precisaremos que, no domínio das formas como no do espírito, é falso tudo o que não está de acordo nem com a natureza virgem, nem com um santuário; toda coisa legítima tem, por um lado, algo da natureza e, por outro, algo do sagrado. Uma característica surpreendente das máquinas é que elas devoram matérias - geralmente telúricas e tenebrosas -, em vez de serem postas em movimento pelo homem apenas ou por uma força natural tal como a água ou o vento; é-se obrigado a saquear a terra para fazê-las "viver", o que não é o menor aspecto de sua função de desequilíbrio. É preciso ser muito cego para não ver que nem a rapidez nem a superprodução são bens, sem falar da proletarização do povo e do afeamento do mundo; mas o argumento de base continua a ser o que enunciamos em primeiro lugar, a saber, que a técnica só pode nascer em um mu n do sem Deus - um mundo no qual a astúcia substituiu a inteligência e a contemplação.
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