Antes de examinar as ideias do general Golbery, convém entender de que geopolítica se trata. A geopolítica do general Golbery não é uma “ciência” e interessa-nos a sua prática no Brasil. Aqui, como na Alemanha pós-década de 1920, ela transformou-se em importante auxiliar daqueles que defendiam um Estado autoritário. Forneceu, juntamente com a Doutrina de Segurança Nacional, a base ideológica da ditadura. Poucos historiadores analisam tal geopolítica como um dos componentes principais do golpe militar de 64. Por ser incoerente e sustentar ideias anacrônicas e absurdas, não desperta respeito. No entanto, considerando o resultado do seu uso, ela desempenhou um papel fundamental. Principalmente porque essas ideias, elaboradas de acordo com um paralogismo que caiu como uma luva para os militares, foram aplicadas.
Em seu livro Geopolítica do Brasil [10], o general Golbery afirma que vivíamos uma guerra universal, permanente, uma luta entre o Bem e o Mal. O Bem, certamente, corresponderia à liberdade defendida pelas democracias ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos. E o Mal estaria no comunismo que a (extinta) União Soviética desejava impor ao mundo. Se não entendêssemos essa “esfinge”, sucumbiríamos. A linguagem do general é apocalíptica:
Essa é a guerra — total, permanente, global, apocalíptica — que se perfila, desde já, no horizonte sombrio de nossa agitada época. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé.
Para vencer a terrível batalha internacional que se avizinhava, seria necessário preparar internamente a nação. Seria preciso implantar a Doutrina de Segurança Nacional e, para isso, decidir-se por uma escolha vital. O conselho do general inspira-se no ministro nazista Goering, que ele cita sem o menor pudor:
Essa é a origem de um novo dilema — o do bem-estar e o de Segurança — assinalado por Goering em dias passados, sob a forma menos justa mas altamente sugestiva de seu conhecido slogan: ‘mais canhões e menos manteiga’. E, na verdade, não há forma de eludir a necessidade de sacrificar o bem-estar em proveito da Segurança, sob condição de que esta se veja realmente ameaçada. Os povos que se negaram a admiti-lo aprenderão no pó da derrota a lição merecida.
A aplicação da sua geopolítica, colocando a Segurança acima do bemestar, previa uma aliança internacional que se submetesse à supremacia do mais forte. No momento em que o governo João Goulart anunciou medidas que levariam, no plano econômico, ao fim da interferência dos Estados Unidos, as ideias do general Golbery ganharam força, inicialmente dentro da ESG e, a partir daí, entre as elites sociais e econômicas.
Citando geopolíticos como Ratzel, que contribuíram para fortalecer a ideologia nazista, o general afirma que:
Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes, e os fracos, mais fracos a cada dia; as pequenas nações se veem repentinamente reduzidas à humilde condição de estados pigmeus e já se lhes profetiza abertamente um final obscuro, sob a forma de inevitáveis integrações regionais; a equação de poder do mundo se simplifica (…) a apenas raras constelações feudais de estados-barões rodeados de satélites e vassalos.
Isso quer dizer: quem se aliar ao grande líder poderá se transformar em estado-barão, assimilando geograficamente ou dominando economicamente os vizinhos fracos. Essa avaliação, carinhosamente acalentada pelos adeptos das teorias do general Golbery, deu origem ao tão denunciado “expansionismo brasileiro”. Tal tendência, implícita na geopolítica de Golbery, concretizou-se depois do golpe, derrubando governos na Bolívia, explorando economicamente o Paraguai (inclusive pela ocupação das suas áreas fronteiriças ao Brasil), planejando a invasão do Uruguai e, ainda, oferecendo homens e estratégia para derrubar Salvador Allende, presidente constitucional do Chile.
A conjugação de vários fatores — econômicos, políticos, sociais e ideológicos — fortaleceu a geopolítica e a Doutrina de Segurança Nacional disseminadas pela ESG. Convém lembrar que o general Golbery não era apenas um teórico, mas um grande organizador, como atestam as suas atuações no Ibad–Ipes, no SNI e à sombra dos governos militares. Assim, é impossível não valorizar a sua geopolítica como forma de veicular o conteúdo das raízes do golpe de 64.
Como seria possível o Brasil tornar-se um estado-barão e exercer a liderança no Cone Sul?
Segundo as ideias do general Golbery, a receita era simples, e cínica dentro de uma brutal sinceridade: entregando as nossas riquezas aos Estados Unidos, que nos dariam, em recompensa, o direito de aplicar a força contra os vizinhos vassalos. De acordo com Golbery:
(…) quando entre nossos vizinhos hispano-americanos recrudesce indisfarçável uma oposição aos Estados Unidos que se mascara de Terceira Posição ou que outro rótulo tenha (…) o Brasil parece estar em condições superiores, por sua economia não competitiva, por sua larga e comprovada tradição de amizade e, sobretudo, pelos trunfos de que dispõe para uma barganha leal — o manganês, as areias monazíticas, as posições estratégicas do Nordeste e da embocadura amazônica com seu tampão da Marajó — de negociar uma aliança bilateral mais expressiva, que não só nos assegure os recursos necessários para concorrermos substancialmente na segurança do Atlântico Sul e defendermos, se for o caso, aquelas áreas brasileiras tão expostas a ameaças extracontinentais contra um ataque envolvente ao território norte-americano via Dacar–Brasil–Antilhas.
Para o general Golbery, havia uma ameaça contra os Estados Unidos que nos envolvia. A “segurança” do Brasil dependeria, portanto, da nossa cooperação na defesa do território norte-americano. Não importa o absurdo da interpretação, mas os resultados práticos que essa análise implicou. O general sugere que ofereçamos o território brasileiro do Nordeste como base militar aos Estados Unidos, para deter o hipotético “ataque” comunista que viria da África. Com uma ressalva: “Mas, por outro lado, o direito de utilização de nosso território, seja para o que for, é um direito exclusivo de nossa soberania que não devemos, de nenhuma forma, ceder por um prato de lentilhas”.
Se não seria por “um prato de lentilhas”, em troca de que cederíamos o Nordeste?
Em troca de exercermos, com o apoio dos Estados Unidos, o nosso “destino manifesto” de influir no Cone Sul. Para viabilizar esse objetivo, Golbery defendia a teoria das “fronteiras ideológicas”. A segurança do Brasil exigiria, além de fronteiras físicas, limites “ideologicamente” instalados nos governos “exóticos” de vizinhos com regimes contrários ao nosso. Tal situação nos daria autoridade para intervir, mesmo militarmente, derrubando-os.
Isso pode parecer um plano insano, mas teve papel importante no modelo que se implantou no Brasil e aplicou as suas ideias, interferindo diretamente nos países do Cone Sul. E o general ia além, afirmando que a atuação brasileira poderia se estender à África:
(…) devemos preparar-nos, na América Latina, para dar uma mão a qualquer de nossos vizinhos, na defesa de um inigualável patrimônio comum, contra qualquer investida exótica. Como segunda prioridade, devemos aprontar-nos também para cooperar, se for necessário, na defesa da África, contra um expansionismo soviético que desde já nos ameaçará diretamente.
Na sequência, Golbery propõe, como “prioridade 3”, ajudar até a Europa a se defender da “covarde ideologia comunista”, chegando a sugerir que se auxiliasse Portugal a manter as suas colônias na África. Não fosse o receio de ocupar muito espaço, poderíamos continuar citando o general. No entanto, o que vimos até aqui já é suficiente para a nossa análise.