Quando Portugal e Espanha dominavam no Ocidente,
as culturas pré-colombianas afirmavam-se como alternativa
do mundo tradicional, em particular, a minha ascendência
mexicana, que se fundamenta nas crenças solares e no
pessimismo heróico do povo Azteca, o “povo do Sol”. Em
seguida, sucedeu-se uma série de desastres que a linhagem
românica partilhou. Impôs-se o monismo judeo-cristão e
sepultaram-se os deuses, que ainda dormem enquanto a taça
se definha. Portugal e Espanha decaíram, face ao empurrão
das potências mercantilistas e usurocráticas, unidas ao
“pathos” racial fomentado pelo capitalismo, como tão bem
explica Werner Sombart. As nossas línguas perderam a sua
ambição imperial e encontram-se agora ameaçadas pela
globalização etnocida e pelo domínio de um “esperanto”
dos mercadores. Mas, nestes momentos de extrema penúria,
de falta de vontade de luta pela nossa diferença, sutge o
exemplo magnífico de Luís Vaz de Camões, o poeta guerreiro,
o grande forjador do português, com o seu olho perdido
por obediência ao destino e encontrado, luminoso, entre as
páginas Os Lusíadas; logo aparece, com os seus óculos
voláteis, o seu credo aristocrático e os seus “heterónimos”
que rondam pela aba do seu chapéu, o enorme Pessoa. Com
a bênção de Camões e Pessoa, dedico esta muito breve
aproximação ao escritor que soube desafiar os dogmas de
uma civilização moribunda — Fernando Pessoa —, com um
gesto de agradecimento da “barbárie” aos irmãos de língua
portuguesa, na lembrança imperial de um só destino, na nossa
relação particular com o Brasil, no âmbito de uma mesma
“pátria espiritual”, sob a glória dos pendões de Vasco da
Gama e do símbolo imbatível do rei D. Sebastião.
Fernando Pessoa: o valor do mito
Dizia Ezra Pound que “poucos homens se podem
permitir, pela simples razão de que, ao fazê-lo, poderiam
por em perigo os seus proventos (directamente), ou o seu
prestígio, ou posição, num ou noutro dos mundos
profissionais, o comprometer-se pelos seus pontos de vista”.
Entenda-se este compromisso como uma exigência da
própria pessoa, independentemente de qualquer
compromisso com os outros. Esta política de um dever
interior fica manifesta nos juízos artísticos de Fernando
Pessoa sobre a política.
O poeta português, crente no mito lusitano do regresso
de D. Sebastião (o rei que representa o regresso à centralidade
na vida espiritual de Portugal e que cumpre a função poética
e profética do mito), revelou uma parte de si numa série de
obras políticas, que mais deveriam ser consideradas como
metapolíticas, e constituem uma forma de poetizar ou
transcendentalizar a política. Convergem em Pessoa diversas
influências. Porventura o seu aspecto menos otiginal é o que
o faz tributário das crenças dominantes na civilização
moderna, como o racionalismo, o positivismo e o culto da
organização. Nesse aspecto, Pessoa assemelhar-se-ia a um
discurso spenceriano, muito mais imaginativo, mas não iria
mais além. Pessoa é um artista que olha a política no seu aspecto
estético e talvez se expressasse sobre ele com reflexões como:
“Mas o permanente é instaurado pelos poetas” e “Os únicos
que mudaram mais os povos foram os poetas”. Assim, o
poeta português concebe-se como um intérprete do
verdadeiro “ser português”, protagonista teórico do
misterioso Núcleo de Acção Nacional, que escreve “não (a)
todos os portugueses que nos leiam, mas (a) todos os que
nos saibam ler”. Trata-se de mitificar a razão para a subverter.
Pessoa considera, então, que o mito é muito mais importante
do que a razão, para uma acção política que pretende ser
artística. E essa é, quiçá, a origem do seu conservadorismo
aristocrático, em que a política é considerada como a
substância mais medíocre e imediata, como reino da fealdade
e da falta de imaginação.
Em 4 igualdade entre os homens, Pessoa assinala, primeiro,
um sentimento e, logo a seguir, um juízo. Descreve o que
certamente experimentou no meio da massa, nas fauces do
poder anónimo da época: “A verdade é que entre um
trabalhador e um macaco há menos diferença do que entre
um trabalhador e um homem realmente culto”. Se tal emoção
de uma diferença pudesse ser tomada como uma negação
do mito soreliano, pelo qual o proletariado é uma nova
aristocracia, responde a uma visão imediata e concreta, como
o suor e o sebo da massa no acto de uniformização da
multidão. O ajuizar de Pessoa põe em dúvida um dos dogmas
da modernidade: o igualitarismo. Diz Pessoa: “Aceito um
homem do povo como um itmão em Deus, como irmão em
Cristo, mas não como um irmão na Natureza”.
Pode duvidar-se agora da fé cristã de Pessoa, tão
interessado numa porventura utópica “reconstrução
transcendental do paganismo”. O que merece atenção é que
Pessoa não só se manterá afastado do salazarismo, como irá propor uma revisão das ideias consagradas da revolução e
da democracia. Há em Pessoa um espírito para com a
dissidência que é imensamente meritório e dá corpo, em
palavras, a certas sensações do homem moderno, como a
sua aceitação sentimental da massa e a sua repulsa física pelo
contacto com ela — o paradoxo de tornar livres os cidadãos
da urbe democrática mediante a uniformidade.
Pessoa considera que as revoluções são
fundamentalmente reaccionárias, uma vez que obedecem a
uma crença religiosa nos milagres. “O milagre é o que o
povo quer, é o que o povo compreende. Que o faça Nossa
Senhora de Lurdes, ou de Fátima, ou que o faça Lenine, aí, é
onde reside a diferença” (D). Para Pessoa, como para Maistre,
a Revolução Francesa legitima uma nova religião laica, um
messianismo secular que nega o direito aos privilégios e à
diferença, que proclama o modelo exclusivo do totalitarismo
democrático: em vez de ser diferentes, ser iguais.
Acontece então que a democracia deixa de ser uma
forma pragmática, para viver numa ordem de liberdades e
transforma-se na idealização suprema. Todos temos de nos
submeter ao progresso linear, à vontade abstracta da maioria.
Pessoa avisa: “O sufrágio representa, quando muito, a maioria
politicamente organizada, a qual, face à maiotia real da
sociedade, é uma minoria e, em geral, uma pequena minoria”.
Em Pessoa, a ideia do Império que, devido à acção
política de expansão das potências modernas, passou a ser
imperialista, retoma o seu significado de potência e de
unidade da Origem. O império deve agora expressar-se pelo
espírito: “Todo o império que não se baseie no império
espiritual é uma morte em pé, um cadáver que manda”. Que
entende Pessoa por acção espiritual? É uma acção de iniciação
que abre outros mundos, que revela uma realidade oculta e
que há-de conduzir à realização do “impérialismo
andrógino”, no qual irá imperar o masculino e o feminino. Não haverá, no discurso de Pessoa, outra forma de
providencialismo? Não já a habitual, a “superstição verbal”
da democracia, mas uma mistificação do “ser português” e
uma utopia lusitana, produto da razão, mais que do mito?
Pessoa tentou tornar cartesiano o super-homem e, em
geral, deu importância a uma tendência difusa para o
despotismo ilustrado que descreveu como a “oligarquia dos
melhores”. Mas o seu significado situa-se num lugar diverso
das ideias políticas, uma vez que se esforçou por transcender
o político pelo artístico. Bastou-lhe esse impulso para
confessar os seus demónios internos e animá-los num sonho
individual. Os seus fantasmas aparecem, às vezes, na
demolição da modernidade: a ordem exclusiva, a única
salvação. Pessoa revolta-se, com o mito, contra o tempo dos
deuses mortos.