domingo, 9 de março de 2025

O Multipolarismo - Alexander Dugin

 

1. Multipolarismo: Definição e Diferenciação de Significados

Dum ponto de vista estritamente científico, até à data não existe qualquer teoria plena e detalhada acerca da T eoria do Mundo Multipolar (TMM). T al também não se encontra entre as teorias e paradigmas clássicos das Relações Internacionais (RI). Procuraríamos em vão por esta por entre as mais recentes teorias pós-positivistas. Para o efeito é desenvolvida no seu aspecto mais flexível e sintetizado – na esfera da investigação geopolítica, que abrange cada vez mais essas temáticas que são “deixadas de fora” ou tratadas de modo preconceituoso no que às relações internacionais diz respeito.

Contudo, surgem cada vez mais obras nos campos dos negócios estrangeiros, da política mundial, da geopolítica e, até, das relações internacionais dedicadas à temática da multipolaridade. Um número cara vez maior de autores tenta compreender e descrever a multipolaridade, seja como modelo, fenómeno, precedente ou como possibilidade.

O tema da multipolaridade tem sido, de algum modo, abordado nas obras de David Kampf, especialista em RI (no seu artigo “Emergência de um mundo multipolar”), do historiador Paul Kennedy, da Universidade de Yale (no seu livro “Ascensão e Queda das Grandes Potências”), do geopolitólogo Dale Walton (no seu livro “Geopolítica e as Grandes Potências do Séc. XXI. A Multipolaridade e a Revolução do Ponto de Vista Estratégico”) e o cientista político americano Dilip Hiro (na sua obra “Depois do Império. O Nascimento de um Mundo Multipolar”), entre outros. O que mais se aproximou, no nosso entender, da compreensão do sentido da multipolaridade foi Fabio Petito, especialista britânico em RI, que tentou elaborar uma alternativa séria e substancial ao mundo unipolar com base nos preceitos legalistas e filosóficos de Carl Schmitt.

Uma “ordem mundial multipolar” é também uma presença frequente nos discursos e nos textos de algumas personalidades políticas e de alguns jornalistas influentes.

Assim sendo, a Secretária de Estado Madeleine Albright, que inicialmente apodava os Estados Unidos de “nação indispensável”, a 2 de Fevereiro de 2000 afirmou que os EUA não queriam “estabelecer nem forçar” um mundo unipolar e que a integração económica já tinha criado “um determinado mundo que já pode ser chamado de multipolar”. A 26 de Janeiro de 2002, na coluna editorial do “New York Times” falava-se abertamente da “emergência de um mundo multipolar” juntamente com a China, que “agora se senta à mesa juntamente com outros centros de poder, tais como Bruxelas ou T óquio”. A 20 de Novembro de 2008, o relatório “T endências Globais para 2025”, do Conselho Nacional de Informação dos EUA, indicava que seria de esperar nas dentro de duas décadas a emergência de um “sistema multipolar global”.

Desde 2009 que Barack Obama, o presidente dos EUA, tem sido visto por muitos como o precursor de uma nova “era multipolar”, acreditando que este irá dar prioridade, no que à política externa dos EUA diz respeito, às potências emergentes, tais como o Brasil, a China, a Índia e a Rússia.

A 22 de Julho de 2009, durante a sua visita à Ucrânia, o vice-presidente Joseph Biden afirmou o seguinte: “estamos a tentar construir um mundo multipolar”.

Contudo, nenhum destes livros, artigos e afirmações contém uma definição concisa acerca da realidade de um mundo multipolar (MM), nem, sequer, uma teoria coerente e consistente para a sua construção (TMM). O tratamento mais comum do “multipolarismo” indica meramente que, no actual processo de globalização, o incontestado centro nuclear do mundo moderno (EUA, Europa e um “Ocidente global” no sentido mais amplo) se defrontam com novos concorrentes – potências regionais prósperas ou meramente influentes e blocos de poder, pertencentes ao “segundo” mundo. A comparação de força entre as potências dos EUA e da Europa, por um lado, e das novas potências ascendentes (China, Índia, Rússia, América Latina, etc.), pelo outro, demonstram cada vez mais a relatividade da tradicional superioridade do Ocidente e colocam novas questões acerca da lógica dos processos que determinam a arquitectura global das forças à escala planetária – seja na política, na economia, na energia, na demografia, na cultura, etc.

T odos estes comentários e observações são cruciais para a construção da T eoria do Mundo Multipolar, mas de nenhum modo destacam a sua ausência. Devem ser considerados aquando da elaboração de tamanha teoria, mas de nada vale a sua natureza fragmentada e desigual, não chegando sequer ao nível primário de uma hipotética generalização conceptual.

Mas, pese embora tudo isto, ouvimos cada vez mais a menção de uma ordem mundial multipolar em cimeiras oficiais, em congressos e em conferências internacionais.

Os laços à multipolaridade encontramse já presentes num número importante de acordos intergovernamentais e nos textos conceituais das estratégias de segurança e defesa de certos países influentes e poderosos (China, Rússia, Irão, parte da UE). Assim sendo, hoje, mais do que nunca, torna-se crucial dar o passo em frente para o pleno desenvolvimento da T eoria do Mundo Multipolar, de acordo com os requisitos básicos do campo académico.

A Multipolaridade não Coincide com o Modelo Nacional da Organização Mundial Enraizado na Lógica do Sistema Westphaliano

Antes de avançarmos para a construção detalhada da T eoria do Mundo Multipolar (TMM), devemos caracterizar solidamente a área conceptual investigada. Para tal, iremos considerar os conceitos base e definir aquelas formas da ordem global mundial, que temos a certeza de não serem multipolares, em relação às quais a multipolaridade é uma alternativa.

Comecemos pelo sistema Westphaliano, que reconhece a soberania absoluta do Estado-nação e constrói sobre este toda a base legal das Relações Internacionais. Este sistema, desenvolvido depois de 1648 (o fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa), passou por diversos estágios e, de certo modo, reflectia a realidade objectiva até ao final da Segunda Guerra Mundial. Nasceu com a rejeição das reivindicações de universalismo e de “missão divina” dos impérios medievais, e assentava com as reformas burguesas ocorridas nas sociedades europeias, com base no preceito de que só um Estado nacional possuí a mais alta soberania e de que fora deste não pode existir qualquer instância que tenha o direito legal de interferir na política interna desse Estado – sejam quais forem os objectivos e propósitos (religiosos, políticos ou outros) que o guiem. Do final do século XVII até meados do século XX, este princípio predeterminou a política europeia e, de igual modo, embora com certas emendas, foi adoptado por outros países do mundo.

O sistema Westphaliano dizia originalmente respeito apenas às potências europeias, bem como às suas colónias, que eram vistas como uma mera continuação dessas potências, não possuindo o necessário potencial político económico necessário para a pretensão a uma soberania independente. Desde princípios do século XX, durante a descolonização, o mesmo princípio Westphaliano estendeu-se às ex-colônias.

Este modelo Westphaliano pressupõe uma igualdade absoluta entre todos os Estados soberanos. Neste modelo existem tantos pólos decisores de negócios estrangeiros quantos Estados soberanos existam no mundo. Esta regra (padrão) ainda vigora, por inércia, e toda a lei internacional nela se baseia.

Mas na prática, claro está, há uma desigualdade e uma subordinação hierárquica entre os vários Estados soberanos. Na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais a distribuição do poder entre as principais potências mundiais levou ao confronto entre blocos separados, nos quais as decisões eram tomadas no país que mais influência detinha entre os seus aliados.

Como resultado da Segunda Guerra Mundial, devido à derrota da Alemanha nazi e das potências do Eixo, o sistema global desenvolveu um sistema bipolar de relações internacionais, o chamado Sistema Bipolar de Ialta. A lei internacional de jure continuou a reconhecer a soberania absoluta de todo e qualquer Estado-nação. De facto, as decisões de base acerca dos assuntos mais importantes da ordem mundial e da política global eram tomadas apenas por dois centros – Washington e Moscovo.

O mundo multipolar difere do sistema Westphaliano clássico devido ao facto de que não reconhece ao Estado-nação individual, legalmente e formalmente soberano, o estatuto de um pólo de pleno direito. Isto significa que o número de pólos de um mundo multipolar devia ser substancialmente inferior ao número de Estados-nação reconhecidos (e não reconhecidos). A vasta maioria desses Estados não consegue actualmente tratar da sua própria segurança nem da sua prosperidade perante o conflito teoricamente possível com a potência hegemónica (que no nosso mundo está claro serem os EUA). Assim sendo, encontram-se política e economicamente dependentes de uma autoridade externa. Sendo dependentes, não podem ser centros de uma vontade verdadeiramente independente e soberana no que diz respeito às questões globais da ordem mundial.

O multipolarismo não é um sistema de relações internacionais, que insiste em que a igualdade legal entre os Estados-nação é contemplada como sendo o real estado das relações. Trata-se meramente da fachada de uma visão muito diferente do mundo, tendo por base o balanço real do poder em vez do balanço nominal das forças e das capacidades estratégicas.

O multipolarismo lida com a situação que exista de facto e não de jure, tendo por origem a constatação da desigualdade fundamental entre os Estados-nação num modelo de mundo moderno e empiricamente fixável. Mais, a estrutura desta desigualdade é a de que as potências secundárias e terciárias não têm como defender a sua soberania perante o desafio externo da potência hegemónica, qualquer que seja a efémera constituição do bloco. Isto significa que, actualmente, essa soberania não passa de uma ficção legal.

Multipolarismo não é Bipolarismo

Após a Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se um sistema bipolar no mundo, também baptizado de Sistema Bipolar de Ialta. Formalmente, continua a insistir no reconhecimento da absoluta soberania de todos os Estado e, com base neste princípio, organizou-se a ONU, que continuou o trabalho da Liga das Nações. Contudo, na prática, no mundo surgiram dois centros de decisão global – Os EUA e a URSS. Os EUA e a URSS foram dois sistemas político-económicos alternativos: ou seja, o capitalismo global e o socialismo global, de modo que o bipolarismo estratégico tinha por base no dualismo ideológico e filosófico – o liberalismo versus o marxismo.

O mundo bipolar tinha por base a paridade económica, militar e estratégica dos EUA e da URSS, na comparação simétrica do potencial de cada um dos campos opostos. Ao mesmo tempo, nenhum outro país fosse em que campo fosse tinha o potencial acumulativo, nem sequer o mais remotamente, comparável ao poderio de Moscovo ou de Washington. Consequentemente, à escala global existiam duas hegemonias, cercadas por uma constelação de países aliados (semivassalos no sentido estratégico). Neste modelo, a soberania nacional dos países, que era formalmente reconhecida, perdia gradualmente o seu peso.

Antes de mais, todos os países estavam dependentes da política global dessa hegemonia no que dizia respeito à zona de influência a que pertenciam. Assim sendo, não eram independentes e os conflitos regionais (normalmente potenciais em zonas do T erceiro Mundo) rapidamente escalavam para um conflito entre as suas superpotências, ansiando redistribuir o balanço da influência planetária aos “territórios em disputa”. T al explica os conflitos na Coreia, no Vietname, em Angola, no Afeganistão, etc.

No mundo bipolar, existia também uma terceira força – o Movimento dos Não-Alinhados. Consistia de alguns países do T erceiro Mundo que recusavam optar inequivocamente em favor fosse do capitalismo ou do socialismo e que preferiam manobrar-se por entre os interesses antagónicos dos EUA e da URSS. Em certa amplitude, alguns conseguiram fazê-lo, mas a possibilidade de um nãoalinhamento em si própria parte do pressuposto da existência de dois pólos, que em determinado grau de contrabalanceiam um ao outro. E estes “países não-alinhados” não conseguiram de qualquer modo criar um “terceiro pólo”, condescendendo com os principais parâmetros das super-potências, estando demasiado fragmentados e não se consolidando uns com os outros, sem uma plataforma socioeconómica comum. O mundo estava dividido entre o Ocidente capitalista (o Primeiro Mundo, o Ocidente), o Leste socialista (o Segundo Mundo) e “o resto” (o T erceiro Mundo), para além disso “todos os outros” representavam em todos os sentidos a periferia do mundo, na qual ocasionalmente se encontravam os interesses das super-potências. Entre as super-potências, propriamente deitas, a probabilidade de conflito estava praticamente posta de parte devido à paridade (a mútua aniquilação causada pelas armas nucleares). As áreas preferenciais para uma revisão parcial do balanço de poder eram os países periféricos (na Ásia, na África e na América Latina).

Após a queda de um dos dois pólos (a União Soviética colapsou em 1991), caiu também o sistema bipolar. T al criou as condições prévias necessárias ao advento de uma ordem mundial alternativa. Muitos analistas e especialistas em RI falam acertadamente acerca “do fim do sistema de Ialta” Reconhecendo a soberania de jure, a Paz de Ialta foi construída de facto com base no princípio do balanço entre as duas hegemonias simétricas e relativamente equilibradas. Com a saída de cena de uma das hegemonias, todo o sistema deixou de existir. Tinha chegado a altura de uma ordem mundial unipolar, ou o “momento unipolar”.

Um mundo multipolar não é um mundo bipolar (tal qual o conhecemos na segunda metade do século XX), uma vez que no mundo actual não há qualquer potência que consiga por si só resistir ao poder estratégico dos Estados Unidos e dos países da OTAN, para além disso não existe qualquer ideologia generalizada e coerente capaz de unir grande parte da humanidade numa oposição duramente ideológica à ideologia da democracia liberal, do capitalismo e dos “direitos humanos”, nas quais se baseia a nova, e única, hegemonia dos Estados Unidos. Nem a Rússia moderna, nem a China, nem a Índia, nem qualquer outro Estado, conseguem sozinhos ter a pretensão de atingir o estatuto de segundo pólo. A recuperação do bipolarismo é impossível graças a razões ideológicas (o fim do apelo generalizado do marxismo), e graças ao poderio e recursos técnicos e militares acumulados (os EUA e os países da OTAN nos últimos 30 anos atingiram um nível tal que é impossível a qualquer país competir com eles nas esferas militar, estratégica, económica e técnica).

O Multipolarismo não é Compatível com um Mundo Unipolar

O colapso da União Soviética significou o desaparecimento de uma super-potência simétrica e influente bem como ainda o desaparecimento de um gigantesco campo ideológico. Foi o fim de uma das duas hegemonias globais. T oda a estrutura da ordem mundial daí para a frente tornou-se irreversivelmente e qualitativamente diferente. Com isto o pólo remanescente – liderado pelos Estados Unidos e tendo por base a ideologia liberal-democrata capitalista – preservou-se fenomenalmente e continuou a expandir o seu sistema sociopolítico (democracia, mercado, ideologia dos direitos humanos) a uma escala global. É precisamente a isto que se chama mundo unipolar, a ordem mundial unipolar. Em tal mundo há um só centro decisor a tratar de todas as grandes questões globais. O Ocidente, e o seu núcleo, a comunidade Euro-Atlântica, liderados pelos Estados Unidos, encontram-se no papel da única hegemonia possível. T odo o espaço planetário neste cenário não passa de uma tripla regionalização (descrita em pormenor na teoria neo-marxista de E. Wallerstein):

- Zona núcleo (“Norte rico”, “centro”).

- Periferia mundial (“Sul pobre”, “periferia”).

- Zona de transição (“semi-periferia”, inclui os principais países que actualmente se desenvolvem em direcção ao capitalismo: China, Índia, Brasil, alguns países do Pacífico, bem como a Rússia, que por inércia mantém um significativo potencial estratégico, económico e energético).

Nos anos 90 aparentemente já se tinha conseguido estabelecer um mundo unipolar, e alguns analistas dos EUA com base nisto proclamaram a tese do “fim da História” (Fukuyama). Esta tese defendia que o mundo se encontrava ideologicamente, politicamente, economicamente e socialmente homogeneizado e que doravante todos os processos que nele ocorram não decorrerão de um drama histórico que tenha por base o combate das ideias e dos interesses, mas tão só a concorrência económica (relativamente pacífica) dos membros do mercado – semelhante à construção da política interna dos regimes democráticos liberais. A democracia torna-se global. No planeta existem apenas o Ocidente e os seus arredores, ou seja, aqueles países que gradualmente nele se irão integrar.

A concepção mais detalhada da teoria do unipolarismo foi apresentada pelos neo-conservadores americanos, que realçam o papel dos EUA na nova ordem mundial global, por vezes louvando abertamente os Estados Unidos – o “Novo Império” (R. Kaplan), “benévola hegemonia mundial” (U. Kristol, R. Keygan) antecipando a ofensiva do “Século Americano” (Projecto Para um Novo Século Americano). O unipolarismo obteve o seu fundamento teórico no neoconservadorismo. A futura ordem mundial era vista como sendo uma construção americanocêntrica, em cujo núcleo se encontram os EUA no papel de árbitro global e personificação dos princípios da “liberdade e da democracia”, em torno deste núcleo estruturase uma constelação de outros países que reproduzem o modelo americano, variando apenas no grau de rigor com que o reproduzem. Variam tanto no campo geográfico quanto no grau de semelhança para com os Estados Unidos:

- No círculo interno – os países da Europa e o Japão.

- Depois, os países liberais e prósperos da Ásia.

- Por fim, todos os outros.

T odas as zonas, situadas em torno da “América Global” em diferentes órbitas, são incluídas no processo de “democratização” e “americanização”. A disseminação dos valores americanos vai a par com a implementação prática dos interesses americanos e com a expansão das zonas de influência directa americana a uma escala global.

A nível estratégico, a unipolaridade expressa-se no papel predominante dos EUA na OTAN bem como na superioridade assimétrica das capacidades militares dos países da OTAN, quando comparadas com todas as nações do mundo.

Em paralelo a tudo isto, o Ocidente ultrapassa os restantes países não-ocidentais em potencial económico, nível de desenvolvimento de tecnologia de ponta, etc. E o mais importante: o Ocidente é a matriz, onde historicamente foram criados e estabelecidos os sistemas de normas e valores que são agora vistos como o padrão universal por todos os países do mundo. Podemos referir-nos a isto como hegemonia intelectual global que, por um lado, mantém a estrutura técnica do controlo global e, por outro, se encontra no centro do paradigma predominante do planeta. A hegemonia material faz par com a hegemonia espiritual, intelectual, cognitiva, cultural e informativa.

Por princípio, a elite política americana guia-se precisamente pela consciência que tem desta abordagem hegemónica, contudo isto é mais claro e transparente entre os neo-conservadores, enquanto os representantes de outras orientações políticas e ideológicas preferem expressões mais dinâmicas. Nem sequer os críticos do mundo unipolar existentes nos Estados Unidos desafiam este princípio da “universalidade” dos valores americanos e anseiam a sua aprovação ao nível global. A objecção tem por base o realismo da extensão deste projecto a médio ou a longo prazo e a dúvida acerca dos EUA serem capazes de aguentarem sozinhos o império global.

O desafio a um domínio americano tão aberto e directo, que aparentava ser um fait accompli nos anos 90, levou alguns analistas americanos (um deles Charles Krauthammer, que criou o conceito) a falar acerca do fim do “momento unipolar”.

Mas, apesar de tudo, foi exactamente a unipolaridade, de uma forma ou outra – de forma assumida ou camuflada – o modelo para a ordem mundial, que se tornou numa realidade depois de 1991, e assim permanece até hoje.

Na prática, a unipolaridade vem a par com a salvação nominal do sistema Westphaliano com os resíduos inertes do mundo bipolar. A soberania de jure de todos os Estados-nação é ainda reconhecida, e o Conselho de Segurança da ONU ainda reflecte um balanço parcial do poder, correspondente às realidades da “Guerra Fria”. Assim sendo, a hegemonia americana de facto encontra-se presente juntamente com uma série de instituições internacionais, que exprimem o balanço do poder de outras eras e ciclos da História das relações internacionais. As contradições entre as situações de facto e de jure recordam-nos constantemente a sua condição, principalmente quando surgem actos de intervenção directa por parte dos EUA ou de alguma coligação ocidental contra outros Estados soberanos (por vezes ignorando o veto de tais acções por parte do Conselho de Segurança da ONU). Em tais casos, como a invasão do Iraque por tropas dos EUA em 2003, vemos o exemplo de uma violação unilateral do princípio da soberania de um Estado independente (ignorando o modelo westphaliano), a recusa em levar em conta a posição da Rússia (de Vladimir Putin) no Conselho de Segurança da ONU e até do desrespeito de Washington pelos protestos dos parceiros europeus da OTAN (Jacques Chirac, da França e Gerhard Schroeder, da Alemanha).

Os apoiantes mais consistentes da unipolaridade (por exemplo, o republicano John McCain) insistem no reforço da ordem internacional alinhada com o balanço real das forças. Propõem a criação de um modelo um tanto ou quanto diferente do da ONU – “Liga das Democracias”, no qual a posição dominante dos EUA, ou seja o unipolarismo, tenha sido legislada. T amanho projecto de legalização estrutural das relações internacionais da hegemonia americana pósIalta, a legalização de um mundo unipolar e do estatuto hegemónico do “Império Americano” – é uma das possíveis vias da evolução do sistema político global.

Salta à vista que a ordem mundial multipolar não só difere da unipolar, como é a sua directa antítese. A unipolaridade pressupõe uma hegemonia e um centro decisor, a multipolaridade insiste nuns quantos centros, não detendo nenhum deles direitos exclusivos e é concebida para ter em conta as posições de terceiros. Assim sendo, a multipolaridade é a alternativa lógica e directa à unipolaridade. Não pode haver qualquer compromisso entre ambas: sob as leis da lógica – o mundo é unipolar ou multipolar. Aqui o importante não é a particularidade legal do modelo adoptado, mas o que é de facto. Na era da “Guerra Fria” os diplomatas e os políticos reconheciam, relutantemente, a “bipolaridade” que, contudo, era um facto óbvio. Assim sendo, é necessário separar a linguagem diplomática da realidade concreta. O mundo unipolar – é a real ordem mundial até à data. Só podemos afirmar se é boa ou má, se nos encontramos na sua alvorada ou, alternativamente, no seu declínio, se irá demorar muito tempo ou se, pelo contrário, irá acabar rapidamente. Mas permanece o facto. Vivemos num mundo unipolar. O momento unipolar ainda permanece (embora alguns analistas estejam convictos de quem está a chegar ao seu fim).

O Mundo Multipolar não é um Mundo Apolar

Os críticos americanos da unipolaridade estrita, em especial os rivais ideológicos dos neo-conservadores, concentrados no “Conselho de Relações Externas”, propõem outro termo em vez de unipolarismo – não-polarismo. Este conceito tem por base a sugestão de que os processos de globalização irão continuar a desenrolar-se e que o modelo ocidental da ordem mundial irá expandir a sua presença a todos os países e povos da T erra. Assim sendo, a hegemonia intelectual e a hegemonia dos valores do Ocidente irá continuar. O mundo global será o mundo do liberalismo, da democracia, do livre mercado e dos direitos humanos. Mas o papel dos EUA como potência nacional e bastião da globalização, de acordo com os defensores desta teoria, irá diminuir. Em vez de uma hegemonia directamente americana, irá emergir um modelo de “governo mundial”, no qual participarão os representantes de vários países, defendendo os valores comuns e tentando estabelecer um só espaço económico e socioeconómico em todo o mundo. Aqui, uma vez mais, nos deparamos com uma analogia ao “fim da História” de Fukuyama, descrito por outras palavras.

O mundo apolar terá por base a cooperação entre países democráticos (por defeito). Mas o processo de formação irá incluir, gradualmente, outros intervenientes não-estatais – ONGs, movimentos sociais, grupos isolados de cidadãos, comunidades em rede, etc

A principal prática na construção do mundo apolar é a dissipação do poder decisor de uma única instância (actualmente Washington) para muitas instâncias de nível inferior – indo ao extremo de referendos planetários, de modo online, acerca dos maiores eventos e acções de toda a humanidade

A economia irá governar sob a política e a competição dos mercados irá varrer todas as barreiras alfandegárias do mundo. A preocupação acerca da segurança do Estado será entregue aos cidadãos. Será a era da democracia global

Esta teoria coincide com as principais características da teoria da globalização que nos surgem num estado tal, capaz de substituir o mundo unipolar. Mas só com base na condição de que o modelo tecnológico e económico (a democracia liberal) bem como o modelo dos valores promovidos hoje pelos EUA e pelos países ocidentais se irão transformar num fenómeno universal e que já não será necessária uma protecção estrita dos ideais democráticos e liberais dos EUA – todos os regimes, resistentes ao Ocidente, à democratização e à americanização já terão sido eliminados aquando do advento do mundo apolar

A elite será semelhante em todos os países, homogénea, capitalista, liberal e democrata – ou seja, “ocidental”, seja qual for a sua origem histórica, geográfica, religiosa e nacional

O projecto de um mundo apolar é apoiado por muitos políticos influentes e por grupos financeiros – dos Rothschild até George Soros e as suas fundações

Este projecto apolar tem em vista o futuro. Pensa o como e o quando de uma formação global, que irá substituir o unipolarismo, será estabelecida. Não se trata de uma alternativa, mas de uma continuação. E esta continuação só será possível quando o centro decisor da sociedade se mover da actual aliança entre dois níveis de hegemonia – material (o complexo militar industrial americano, a economia e os recursos ocidentais) e espiritual (padrões, procedimentos, valores) – para uma hegemonia puramente intelectual, à qual se junta a redução gradual da importância do domínio material

Trata-se, nomeadamente, da sociedade da informação global, na qual os principais processos de domínio e decisão farão parte do campo dos serviços de informação, do controlo mental e da programação do mundo virtual

O mundo multipolar não pode ser combinado com o modelo do mundo apolar, uma vez que não aceita a validade do momento unipolar como prelúdio de uma futura ordem mundial, tal como não aceita nem a hegemonia intelectual do Ocidente, nem a universalidade dos seus valores, nem a dissipação das decisões numa multiplicidade planetária, não importa qual a sua identidade cultural e civilizacional. O mundo apolar sugere que o modelo do cadinho [melting pot] americano se irá estender a todo o mundo. Consequentemente, isto irá eliminar todas as diferenças entre povos e culturas e a humanidade, individualizada e atomizada, será transformada numa cosmopolita ‘sociedade civil’ sem quaisquer fronteiras. O multipolarismo pressupõe que os centros decisores sejam suficientemente relevantes (mas não dependentes de uma única instância – como nas actuais condições do mundo unipolar) e que as especifidades culturais de cada civilização sejam preservadas e fortalecidas (e não dissolvidas numa só multiplicidade cosmopolita)

Multipolaridade não é o Mesmo que Multilateralismo

Outro modelo de ordem mundial, um tanto ou quanto distanciado da hegemonia directa dos EUA, é o mundo multilateral (multilateralismo). Este conceito encontra-se muito disseminado no seio do Partido Democrata dos EUA, e foi formalmente adoptado pela política externa da administração do presidente Obama. No contexto dos debates acerca da política externa americana, esta abordagem opõe-se ao unipolarismo, no qual insistem os neoconservadores.

Na prática, o multilateralismo defende que os EUA não devem agir no campo das relações internacionais fiando-se apenas no seu poderio, arrastando de modo autoritário todos os seus aliados e “vassalos”. Pelo contrário, Washington deve ter em consideração a posição dos seus parceiros, persuadi-los e debater as suas soluções dialogando com eles, trazendo-os para o seu lado por intermédio da argumentação racional e, por vezes, propostas de compromisso.

Em tal situação os Estados Unidos seriam os “primeiros entre os iguais” em vez do “ditador entre os seus subordinados”. Isto impõe que a política externa dos Estados Unidos certas obrigações para com os seus aliados nas políticas globais e exige a obediência a uma estratégia mais ampla. Neste caso, essa estratégia mais ampla é a estratégica ocidental de estabelecer uma democracia e um mercado globais e implementar a ideologia dos direitos humanos a uma escala global. Mas, no decorrer deste processo, sendo os EUA os líderes, o interesse nacional destes não equivale aos valores “universais” da civilização ocidental, em cujo nome agem. Nalguns casos, é preferível operar no seio de uma coligação e, por vezes, até efectuar algumas cedências aos seus parceiros.

O multilateralismo difere do unipolarismo graças à ênfase que dá ao Ocidente em geral, principalmente à sua componente “meritória” (ou seja, a “norma”). Nisto os defensores do multilateralismo convergem com os que advogam a emergência de um mundo apolar. A única diferença entre o multilateralismo e o apolarismo é o facto do multilateralismo ter por base a coordenação interna dos países democráticos do Ocidente enquanto que o apolarismo inclui, entre os seus actores, autoridades não estatais – ONGs, redes, movimentos sociais, etc.

É de realçar que, na prática, a política multilateralista de Obama, inúmeras vezes mencionada por este, e pela Secretária de Estado, Hillary Clinton, não difere muito da era do imperialismo directo e transparente de George W.

Bush, na qual predominavam os neoconservadores. As intervenções militares dos EUA continuaram (Líbia) e as tropas dos EUA permaneceram no Iraque e no Afeganistão ocupados.

O mundo multipolar não assenta numa ordem mundial multilateral, uma vez que se opõe ao universalismo dos valores do Ocidente e não reconhece a legitimidade do “Norte rico” – por si só ou colectivamente – em agir em nome de toda a humanidade e agir como único centro de decisão em todas as questões de maior importância.

A diferenciação do termo “mundo multipolar” da cadeia de termos alternativos ou co-similares realça o campo semântico no qual continuaremos a elaborar a teoria do multipolarismo. Até agora debruçamo-nos apenas sobre o que a ordem mundial multipolar não é, as negações e as diferenciações, por si só, permitem-nos distinguir e contrastar uma série de características constituintes bastante positivas.

Se generalizarmos esta parte positiva, que surge por entre uma série de distinções, ficamos com uma ideia aproximada.

1. O mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que existe de facto na actual situação) dado que insiste na presença de uns quantos centros decisores independentes, a nível global.

2. Estes centros devem encontrar-se suficientemente e financeiramente equipados, sendo materialmente independentes de modo a conseguirem defender a sua soberania no caso de uma invasão directa levada a cabo por um inimigo potencial, como exemplo devemos ter a mais forte potência actual. Esta condição resume-se à capacidade de conseguir resistir à hegemonia estratégico-militar dos Estados Unidos e dos países da OTAN.

3. Esses centros decisores não devem aceitar sine qua non o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais (democracia, liberalismo, livre mercado, parlamentarismo, direitos humanos, individualismo, cosmopolitismo, etc.) e devem ser totalmente independentes da hegemonia espiritual do Ocidente.

4. O mundo multipolar não significa um regresso ao sistema bipolar, dado que hoje não existe qualquer força estratégica ou ideológica capaz de, por si só, resistir à hegemonia espiritual e material do Ocidente moderno e do seu líder – os Estados Unidos. Devem existir mais de dois pólos num mundo multipolar.

5. O mundo multipolar não reconhece a soberania dos actuais Estados-nação, soberania essa que assenta numa base meramente legal e que não se confirma graças à ausência de poderio estratégico e económico e ainda potencial político. No século XXI ser um Estado nacional já não é suficiente para se ser uma entidade soberana. Em tais circunstâncias a verdadeira soberania só pode ser obtida por intermédia de uma combinação, de uma coligação de Estados. O sistema westphaliano, que continua a existir de jure, já não reflecte a realidade do sistema das relações internacionais e precisa de ser revisto.

6. O multipolarismo não se reduz ao apolarismo nem ao multilateralismo, dado que não coloca o centro decisor (o pólo) no seio dum governo mundial, nem na clava dos EUA e dos seus aliados democráticos (o “Ocidente global”) nem ao nível das redes sub-estatais, ONGs e outras instâncias da sociedade civil. O pólo deve localizar-se noutra esfera qualquer.

Estes seis pontos definem a base para uma maior elaboração e resumem as principais características do multipolarismo. Contudo, embora esta descrição nos aproxime significativamente da compreensão da essência do multipolarismo, é ainda insuficiente para ser qualificada como uma teoria. Trata-se de uma predeterminação inicial, com a qual se inicia a teorização, propriamente dita.

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