quinta-feira, 27 de março de 2025

Direitos Humanos e Diversidade Cultural - Alain de Benoist

 



A teoria dos direitos humanos se apresenta como uma teoria válida em todo tempo e lugar, ou seja, como uma teoria universal. A universalidade, reputada como inerente a cada indivíduo entendido como sujeito, representa a medida aplicável a qualquer realidade empírica. Nessa perspectiva, dizer que os direitos são “universais” é outra forma de dizer que são absolutamente verdadeiros. Ao mesmo tempo, sabemos bem que a ideologia dos direitos humanos é um produto do pensamento das Luzes, que a própria ideia de direitos humanos pertence ao horizonte específico da modernidade ocidental. A questão que surge então é saber se a origem estreitamente circunscrita desta ideologia não desmente implicitamente suas pretensões de universalidade. Qualquer declaração de direitos, ao estar fechada historicamente, não provocaria uma tensão ou uma contradição entre a contingência histórica que presidiu sua elaboração e a exigência de universalidade que pretende afirmar?

Está claro que a teoria dos direitos, comparada a todas as culturas humanas, representa mais uma exceção do que uma regra – e constitui, inclusive, uma exceção no interior da cultura europeia, já que surgiu em um momento determinado e relativamente tardio da história da cultura. Se os direitos estão “ali” desde sempre, presentes na própria natureza do homem, podemos nos surpreender com o fato de que somente uma pequena porção da humanidade os tenha notado e que tenha sido necessário tanto tempo para destacar sua existência. Como compreender que o caráter universal dos direitos tenha se tornado “evidente” para apenas uma sociedade particular? E como imaginar que esta sociedade pode proclamar seu caráter universal sem reivindicar, ao mesmo tempo, seu monopólio histórico, ou seja, sem pretender sua superioridade diante daqueles que não o reconheceram?

A própria noção de universalidade também suscita problemas. Quando se fala de universalidade de direitos, de que tipo de universalidade se pretende falar? De uma universalidade de ordem geográfica, filosófica ou moral? A universalidade dos direitos confronta, além disso, com esta questão levantada por Raimundo Panikkar: “tem algum sentido se perguntar se reúnem as condições de universalidade, quando a própria questão da universalidade está longe de ser uma questão universal?”77.

Dizer que todos os homens são titulares dos mesmos direitos é uma coisa, dizer que esses direitos devem ser reconhecidos em todos os lados sob a forma pela qual são produzidos pela ideologia dos direitos é outra [coisa] muito diferente. Isto levanta, de fato, a questão de saber quem tem a autoridade para impor este ponto de vista, qual é a natureza dessa autoridade e o que garante o bom fundamento de seu discurso. Em outros termos: quem decide que deve ser assim e não de outra maneira? Todo universalismo tende a ignorar ou suprimir as diferenças. Em sua formulação canônica, a teoria dos direitos parece estar pouco disposta a reconhecer a diversidade cultural, e isso acontece por duas razões: por um lado, seu enraizado individualismo e o caráter altamente abstrato do sujeito que proclama seus direitos; por outro lado, os laços históricos privilegiados com a cultura ocidental, ou ao menos com uma das tradições constitutivas desta cultura. Isto foi perfeitamente demonstrado pela revolução francesa quando afirmou a necessidade de “rechaçar os judeus como nação, mas aceitá-los como indivíduos” (Clermont-Tonnerre), o que vinculava a emancipação dos judeus à destituição de seus laços comunitários. Desde então, o discurso dos direitos humanos não deixou de ser confrontado com a diversidade humana tal como se expressa na pluralidade dos sistemas políticos, das tradições religiosas e dos valores culturais. Este discurso está orientado a dissolvê-los ou poder diluí-los, com o risco de se dissolver a si mesmo? É compatível com as diferenças ou é capaz apenas de fazê-las desaparecer? Todas essas questões, que deram lugar a uma considerável literatura78, desembocam, no fim das contas, em uma alternativa simples: se se sustenta que os conceitos constitutivos da ideologia dos direitos humanos são, apesar de sua origem ocidental, conceitos verdadeiramente universais, é necessário que isso seja provado.

Se se renuncia à sua universalidade, arruína-se todo o sistema: de fato, se a noção de direitos é puramente ocidental, sua universalização em escala planetária representa, com plena evidência, uma imposição de fora, uma forma sub-reptícia de converter e dominar, ou seja, [representa] uma continuação da síndrome colonial.

Uma primeira dificuldade aparece já ao nível do vocabulário. Até a Idade Média, não se encontra, em nenhuma língua europeia – tampouco em árabe, hebreu, mandarim ou japonês – um termo que designe algum direito como atributo subjetivo da pessoa, distinto enquanto tal da matéria jurídica (o direito). Isso nos leva a dizer que, até um período relativamente tardio, não existia nenhuma palavra para designar os direitos como algo pertencente aos homens somente em virtude de sua humanidade. Só este fato – avalia Alasdair MacIntyre – já nos faz duvidar de sua realidade79.

A própria noção de direito é tudo menos universal. Para expressá-la, a língua hindu possui apenas equivalentes aproximativos, como yukta e ucita (apropriado), nyayata (justo) e inclusive dharma (obrigação). Em mandarim, “direito” se traduz mediante a justaposição de dois ideogramas, chuan li, que designam poder e interesse. Em árabe, a palavra haqq, “direito”, significa, em princípio, verdade80.

A teoria dos direitos humanos postula, aliás, a existência de uma natureza humana universal, independente de épocas e lugares, que seria suscetível de se conhecer por meio da razão. Esta afirmação, que não é própria deles (e que em si não tem nada de questionável), dá uma interpretação muito particular que implica uma tríplice separação: entre o homem e os demais seres vivos (o homem é o único titular dos direitos naturais); entre o homem e a sociedade (o ser humano é, fundamentalmente, o indivíduo; o fato social não se torna pertinente para conhecer sua natureza); e entre o homem e o conjunto do cosmos (a natureza humana não deve nada à ordem geral das coisas). No entanto, esta tríplice cisão não existe na imensa maioria das culturas não-ocidentais, compreendidas, evidentemente, naquelas que reconhecem a existência de uma natureza humana.

O problema se choca em particular com o individualismo. Na maioria das culturas – como, aliás, deve-se recordar, na cultura ocidental das origens – o indivíduo em si simplesmente não é representável. Jamais é concebido como uma mônada, separado do que o une não somente aos seus semelhantes, mas à comunidade dos seres vivos e ao universo inteiro. As noções de ordem, de justiça e de harmonia não se elaboram a partir dele, nem a partir do lugar único que seria o do homem no mundo, mas a partir do grupo, da tradição, dos laços sociais ou da totalidade do real. Falar de liberdade do indivíduo em si não tem, então, sentido algum em culturas que se mantêm fundamentalmente holistas e que se recusam a conceber o ser humano como um átomo autossuficiente. Nestas culturas, a noção de direitos subjetivos está ausente, enquanto é onipresente a de obrigação mútua e a da reciprocidade. O indivíduo não tem que fazer valer seus direitos, mas trabalhar para encontrar no mundo e, em princípio, na sociedade a qual ele pertence, as condições mais propícias para a realização de sua natureza e a excelência do seu ser.

O pensamento asiático, por exemplo, se expressa, sobretudo, mediante a linguagem dos deveres. A noção moral que serve de base ao pensamento chinês é a dos deveres para com os demais, não a dos direitos que poderiam se opor a eles [, os deveres,], pois “o mundo dos deveres é logicamente anterior ao mundo dos direitos”81. Na tradição confuciana, que valoriza a harmonia dos seres entre si e com a natureza, o homem não poderia possuir direitos superiores aos da comunidade à qual pertence. Os homens se vinculam entre si pela reciprocidade de seus deveres e pela obrigação mútua.

Além disso, o mundo dos deveres é mais extenso do que o dos direitos. Enquanto a cada direito corresponde teoricamente um dever, não é verdade que a cada obrigação corresponde um direito: podemos ter obrigações para com alguns homens de quem não temos nada a esperar, assim como também para com a natureza e os animais, que não nos devem nada82.

Na índia, o hinduísmo representa o universo como um espaço onde os seres atravessam ciclos multiformes de existência. No taoísmo, o Tao do mundo é visto como um antecedente universal que governa a marcha dos seres e das coisas. Na África negra, o vínculo social associa tanto os vivos quanto os mortos. No Oriente próximo, as noções de respeito e de honra determinam as obrigações no interior da família extensa e do clã83. Todos esses dados são pouco conciliáveis com a teoria dos direitos. “Os direitos humanos são um valor ocidental – escreve Sophia Mappa – que não é de modo algum compartilhado com outras sociedades do globo, apesar dos discursos miméticos”84. 

Estabelecer que o que vem primeiro não é o indivíduo mas o grupo não significa absolutamente que o indivíduo esteja “limitado” ao grupo, mas, melhor dito, que adquire sua singularidade em respeito a uma relação social que também é constitutiva de seu ser; isso tampouco quer dizer que não exista em todo lugar um desejo de escapar do despotismo, da coerção e dos maus-tratos. Entre o indivíduo e o grupo pode surgir tensões; isso é algo universal. O que realmente não é universal é conceber a crença que estabelece que o melhor meio para preservar a liberdade é conceber, de maneira abstrata, um indivíduo desprovido de todas suas características concretas, desligado de tudo aquilo a que pertence natural e culturalmente. Existem conflitos em todas as culturas, porém na maioria delas a visão do mundo que prevalece não é uma visão conflitiva (o indivíduo contra o grupo), mas uma visão “cósmica”, dirigida para a ordem e harmonia natural das coisas. Cada indivíduo tem um papel a ser desempenhado no conjunto em que se insere, e o papel do poder político é assegurar, da melhor maneira possível, essa coexistência e harmonia, garantia de continuidade. Devido ao fato de que o poder é universal, ainda que as formas que ele assume não o sejam, o desejo de liberdade também é universal, mesmo que as formas de responder a esse desejo possam variar consideravelmente.

O problema se torna particularmente agudo quando as práticas sociais ou culturais denunciadas em nome dos direitos humanos não são práticas impostas, mas práticas habituais que gozam claramente da aprovação massiva no interior das populações interessadas (e isso não quer dizer que jamais sejam criticadas). Como se poderia obrigá-los a [adentrar] uma doutrina fundamentada no fato de que os indivíduos dispõem livremente de si mesmos? Se os homens devem ser deixados em liberdade para fazer o que quiserem conquanto o uso de sua liberdade não se intrometa na dos demais, por que povos cujos costumes nos parecem ofensivos ou condenáveis não poderiam ser deixados em liberdade para praticá-los, uma vez que não buscam impô-los aos outros?

O exemplo clássico é o da circuncisão feminina, praticada ancestralmente e até hoje em numerosos países da África negra (assim como em alguns países muçulmanos).

Trata-se, muito claramente, de uma prática anômala, mas que se torna difícil de extrair do contexto cultural e social, onde é considerado, pelo contrário, algo moralmente bom e socialmente necessário: uma mulher sem esta mutilação não poderia se casar e nem poderia ter filhos; por isso, as mulheres que foram mutiladas são as primeiras a querer que o corte seja também praticado em suas filhas. A questão reside em saber em nome de quê se poderia impedir a continuação de um costume que não é imposto a ninguém. A única resposta razoável seria que se pode apenas convidar os interessados a refletir sobre o seu pertencimento, ou seja, encorajar a crítica interna em torno desta prática. É a eles e elas a quem concerne o problema e a quem, primeiramente, deveria se submeter85.

Para citar outro exemplo, quando em um país muçulmano uma mulher é apedrejada por adultério – algo que indigna os defensores dos direitos humanos – poder-se-ia perguntar: qual é o sentido de tal indignação? No modo de executá-la (apedrejamento)? No fato de que a adúltera é condenada à morte (ou que simplesmente seja condenável)? Ou na própria pena de morte? O primeiro motivo parece, sobretudo, de ordem emotiva86; o segundo, pelo menos, pode ser discutido (qualquer que seja o sentimento que tenhamos a respeito desta questão, em nome de quem se poderia impedir que os membros de uma cultura determinada pensem que o adultério é uma falta que merece uma sanção e que qualifiquem como quiserem a gravidade de uma tal sanção?). Em relação ao terceiro, torna todos os países que mantêm a pena de morte, começando pelos Estados Unidos, violadores dos direitos humanos.

Querer atribuir um valor universal aos direitos humanos tal como estão formulados – escreve Raimundo Panikkar – é postular que a maioria dos povos do mundo estão comprometidos, do mesmo modo que as nações ocidentais, com um processo de transição de uma Gemeinschaft mais ou menos mítica […] a uma “modernidade” organizada de forma “racional” e “contratual”, igualada àquela que conhece o mundo ocidental industrializado. Este é um postulado discutível.87 Uma vez que proclamar o conceito de direitos humanos […] bem poderia se revelar como um cavalo de troia que, clandestinamente, se introduz no coração de outras civilizações com a finalidade de fazer aceitar os modos de existência, de pensamento e de sentir em virtude dos quais os direitos humanos constituem a solução que se impõe em caso de conflito.88 Aceitar a diversidade cultural exige um pleno reconhecimento do Outro. Mas como reconhecer o Outro se seus valores e suas práticas se opõem àquelas que se quer propor? Os defensores da ideologia dos direitos são, em geral, partidários do “pluralismo”. Mas que compatibilidade há entre os direitos humanos e a pluralidade dos sistemas culturais e das crenças religiosas? Se o respeito aos direitos individuais passa pelo não-respeito às culturas e aos povos, deve-se concluir que todos os homens são iguais, mas que as culturas que esses seres iguais criaram não são?

A imposição dos direitos humanos representa categoricamente uma aculturação, cuja aplicação corre o risco de significar a dissolução ou a erradicação de identidades coletivas que também desempenham um papel na constituição das identidades individuais. A ideia clássica que assegura que os direitos protejam os indivíduos dos grupos aos quais pertencem e que constituem um recurso a respeito das práticas, das leis ou dos costumes que caracterizam tais grupos, confirma seu caráter duvidoso. Aqueles que denunciam esta ou aquela “violação dos direitos humanos” medem sempre com exatidão em que ponto a prática que criticam pode ser inerente à cultura em cujo interior se observa? Aqueles que se queixam da violação de seus direitos estariam dispostos, por sua vez, a respeitar esses direitos ao custo da destruição da sua própria cultura? Não desejariam, pelo contrário, que seus direitos fossem reconhecidos com base naquilo que faz da sua cultura especial? Os indivíduos – escreve Paul Piccone – só poderão estar protegidos [pelos direitos humanos] quando a essência desses direitos tiver sido incorporada ao sistema jurídico particular de sua comunidade e todo o mundo realmente acreditar nela.89 A observação é justa. Por definição, os direitos humanos não podem ser invocados a não ser onde já tenham sido reconhecidos, nas culturas e nos países que já tenham interiorizado os princípios – ou seja, ali onde, teoricamente, não deveria ter necessidade de reivindicá-los. Então, se os direitos humanos não podem ter eficácia além do lugar em que os princípios que os fundamentam já tenham sido interiorizados, a distorção das culturas provocada por sua brutal importação vai diretamente contra o objetivo buscado.

O paradoxo dos direitos humanos – acrescenta Piccone – consiste em que seu desenvolvimento implica na erosão e na destruição das condições (tradições e costumes) sem as quais sua aplicação se tornaria estritamente impossível.90 * É com o fim de conciliar a ideologia dos direitos com a diversidade cultural que se elaborou a noção de direito dos povos. Esta nova categoria de direitos foi teorizada depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo no marco das reivindicações nacionalistas que deveriam conduzir à descolonização, mas também sob a influência dos trabalhos de etnólogos como Claude Levi-Strauss que, como reação aos defensores do evolucionismo social (Lewis Morgan), denunciava os despropósitos da aculturação e colocava ênfase nas particularidades culturais ou na necessidade de reconhecer direitos particulares às minorias étnicas. Mais recentemente, a renovação das afirmações identitárias de todo tipo – reação compensatória diante da recusa das identidades nacionais e da crescente esclerose dos Estados-nação – atualizou o assunto.

Para Lelio Basso, grande defensor dos direitos dos povos, os verdadeiros “sujeitos da história são os povos, que também são os sujeitos do direito”91.

Uma Declaração Universal dos Direitos dos Povos foi adotada na Argélia em 4 de julho de 1976 (data do bicentenário da Declaração dos Direitos nos EUA). Ali se estipula que “todo povo tem direito ao respeito a sua identidade nacional e cultural” (artigo 2º), que todo povo “determina seu estatuto político com plena liberdade” (artigo 5º), que possui um “direito exclusivo sobre suas riquezas e recursos naturais” (artigo 8º), que tem o “direito de dar a si mesmo o sistema econômico e social de sua eleição” (artigo 11º), o “direito de falar sua língua, de preservar e desenvolver sua cultura” (artigo 13º), assim como “o direito de não ser outorgado a uma cultura que lhe seja alheia”92. A simples enumeração destes direitos, que em sua maioria são letra morta, basta para demonstrar até que ponto sua harmonização com a teoria clássica dos direitos é problemática. O direito de manter uma identidade coletiva, por exemplo, pode competir com alguns direitos individuais. O direito à segurança coletiva também pode consistir em severas limitações às liberdades individuais. De modo geral – escreve Norbert Rouland – “é certo que a noção dos direitos humanos tem por resultado servir de obstáculo ao reconhecimento dos direitos coletivos dos grupos étnicos”93. E quanto ao direito dos povos à autodeterminação, que serviu de base para a descolonização, contradiz categoricamente o direito de intervenção por uma inclinação “humanitária”94.

Os otimistas pensam que os direitos individuais e os direitos coletivos são espontaneamente harmônicos porque são complementares; as percepções difeririam de qualquer maneira quanto à hierarquia que se impõe entre os primeiros e os segundos. Assim, Edmund Jouve assegura que “os direitos humanos e os direitos dos povos não poderiam se contradizer”95. Outros, mais numerosos, salientam as inegáveis contradições, mas esboçam conclusões divergentes.

Muitos chegaram a pensar que a noção de direito dos povos é só uma abstração destinada a justificar a substituição de uma opressão por outra, e que somente contam os direitos dos indivíduos – observa Leo Matarazzo. Outros, pelo contrário, pensam que os direitos humanos não são invocados senão como subterfúgio ideológico para justificar atos atentatórios aos direitos dos povos.96 Encontramos a mesma diversidade de opiniões a propósito do caráter “universal” ou, pelo contrário, estritamente ocidental dos direitos humanos. Seguindo Alain Renault, que afirma que “a referência aos valores universais não implica em absoluto o desprezo ao particular”97, a maioria dos partidários da ideologia dos direitos continua sustentando com força sua universalidade.

Os direitos humanos – declara John Rawls – não são consequência de uma filosofia particular nem de uma forma, entre outras, de ver o mundo. Não estão ligados só à tradição cultural do Ocidente, embora no interior desta tenham sido formuladas pela primeira vez. Derivam simplesmente da definição de justiça.

Aqui, o postulado implícito é evidentemente que só há uma definição possível de justiça. “Ainda que seja certo que os valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem derivem da tradição das Luzes – acrescenta Willian Schultz – virtualmente todos os países do mundo os aceitaram”99. Como é possível que muitas vezes se tenha que recorrer às armas para os impôr? Com uma tal perspectiva seria, de certa forma, por azar que o Ocidente tenha chegado antes que os demais a esse “estágio” no qual se tornou possível formular explicitamente uma aspiração atual [que] em todos os lugares [tenha existido] de maneira implícita. Essa primazia histórica não lhe conferiria qualquer superioridade moral particular. Os ocidentais estariam somente “adiantados”, enquanto as outras culturas estariam “atrasadas”. Trata-se do esquema básico da ideologia do progresso. A discussão em torno da universalidade dos direitos humanos lembra muitas vezes os diálogos “ecumênicos” nos quais erroneamente se assume que todas as crenças religiosas remetem, sob diferentes formas, a “verdades” comuns. O raciocínio para demonstrar que os direitos são universais é quase sempre o mesmo, consiste em supor que em todo o mundo existe um desejo de bem-estar e liberdade, de onde se segue que o argumento para legitimar o discurso dos direitos responderia a essa demanda100. Contudo, esta conclusão está totalmente errada. Ninguém jamais negou que todos os homens tenham algumas aspirações em comum, nem que se possa estabelecer um consenso para considerar algumas coisas como intrinsecamente boas ou intrinsecamente más. Em todo o mundo a pessoa sempre prefere estar saudável a estar enferma, ser livre a estar aprisionada, em todos os lados detesta-se ser golpeado, torturado, arbitrariamente preso, massacrado etc.

Mas de que alguns bens sejam humanos não se segue que o discurso dos direitos seja válido e menos ainda que seja universal. Em outras palavras, não é a universalidade do desejo de escapar da coerção a que se trata de demonstrar, mas antes a universalidade da linguagem que se quer utilizar para responder a um tal desejo. Não se pode confundir os dois planos. E jamais se abordou a segunda demonstração.

A forma com a qual se combinam os diferentes valores entre si, aliás, raramente transcende a pluralidade das culturas pela simples razão de que cada um destes valores recebe uma distinta coloração no interior de cada cultura. Dizer – como muitas vezes assinalou Charles Taylor – que um valor é bom é dizer que a cultura na qual tal valor é valorizado merece ser vista, ela mesma, como boa. Quanto à razão, que está longe de ser axiologicamente neutra, qualquer tentativa de associá-la com o valor que seja, assim que seja decretada como “universal”, inexoravelmente a vincula com a cultura particular na qual tal valor é honrado.

À pergunta “o conceito dos direitos humanos é um conceito universal?” Raimund Panikkar responde com clareza:

A resposta é simplesmente não. E isto devido a três razões: a) nenhum conceito é universal por si mesmo.

Cada conceito é válido, em primeiro lugar, ali onde foi concebido. Se queremos estender sua validez para além dos limites de seu próprio contexto, ter-se-ia que justificar tal extrapolação […] Além disso, todo conceito tende à univocidade. Aceitar a possibilidade de conceitos universais implicaria uma concepção estritamente racionalista da verdade. Mas, mesmo que esta posição correspondesse à verdade teórica, a existência de conceitos  universais  não corresponderia, em razão da pluralidade de universos discursivos que apresenta de fato o gênero humano […] b) no interior do vasto campo da própria cultura ocidental, os postulados que servem para situar nossa problemática não são universalmente admitidos. c) ainda que se adote, em alguma medida, uma atitude de espírito transcultural, o problema  aparecerá  como exclusivamente ocidental, que é o que está em questão. A maioria dos postulados, assim como outras pressuposições conexas enumeradas anteriormente, não estão presentes em outras culturas.101 Esta é a razão pela qual alguns autores se resignam a admitir que os direitos humanos são uma “construção ocidental de aplicabilidade limitada”102, dificilmente aplicável, em qualquer caso, às culturas cuja tradição é alheia ao individualismo liberal. O próprio Raymond Aron tinha compreendido assim:

Qualquer declaração de direitos parece, finalmente, uma expressão idealizada de uma ordem política ou social que determinada classe ou civilização se esforça por realizar […]. Isso também explica o equívoco da Declaração Universal dos Direitos de 1948, que toma da civilização ocidental a mesma prática de elaborar uma declaração de direitos, enquanto outras civilizações ignoram não as normas coletivas ou os direitos individuais, mas sua expressão teórica – de pretensão universal – destes ou daqueles.103 A crítica ao universalismo dos direitos em nome do pluralismo cultural não é nova. Herder e Savigny, na Alemanha, assim como Henry Maine na Inglaterra, demonstraram que a matéria jurídica não poderia ser compreendida sem que se levasse em conta as variáveis culturais. Uma crítica análoga encontramos em Hannah Arendt, quando escreve que “o paradoxo dos direitos abstratos, ao recusar os direitos de uma humanidade sem raiz, corre o risco de privar de identidade aqueles que são, precisamente, vítimas do desenraizamento imposto pelos conflitos modernos”.

Na mesma linha, Alasdair MacIntyre lança três objeções à ideologia dos direitos humanos. A primeira é que a noção de direito, tal como assume esta ideologia, não se encontra em nenhum lugar, o que demonstra que não é intrinsecamente necessária na vida social. A segunda é que o discurso dos direitos, na medida em que pretende proclamar direitos derivados de uma natureza humana atemporal, está estritamente circunscrito a um período histórico determinado, o que torna pouco crível a universalidade de seu propósito. A terceira é que qualquer tentativa de justificar a crença em tais direitos está marcada pelo fracasso. Ao salientar que não se pode ter e desfrutar desses direitos a não ser em um tipo de sociedade que possua certas regras estabelecidas, MacIntyre escreve: “estas regras não aparecem a não ser em períodos históricos particulares e em circunstâncias sociais peculiares.

Não são, em absoluto, as características universais da condição humana”104. E conclui que esses direitos, assim como bruxas e unicórnios, são apenas ficção105.

* A teoria dos direitos humanos, enquanto se apresenta incisivamente como uma verdade universal, representa, em certos aspectos, uma reação contra o relativismo. Aqui há um certo paradoxo, pois esta teoria emana do mesmo liberalismo doutrinal que, historicamente, também legitimou o relativismo ao proclamar o igual direito que cada indivíduo tem de perseguir os fins que imperiosamente tenha escolhido. (A contradição aparece claramente entre aqueles que elogiam o “multiculturalismo” a partir de uma posição estritamente relativista e ao mesmo tempo denunciam tal ou qual tradição como um “atentado contra os direitos humanos”). Mas se a ideologia dos direitos humanos escapasse do relativismo, corre, ao contrário, o risco de cair no etnocentrismo. Isto é o que Hubert Védrine, antigo ministro de Assuntos Exteriores, confirma quando dizia que a vulgata dos direitos humanos chegou a considerar que “os valores ocidentais são, em bloco e sem discussão nem matiz possível, valores universais e invariáveis, e qualquer questionamento a este respeito, qualquer pragmatismo, é um sacrilégio”106.

Dar por certo que sem um reconhecimento explícito dos direitos humanos a vida seria caótica e careceria de sentido – escreve, por sua vez, Raimund Panikkar – compartilha de uma mentalidade similar a sustentar que, sem a crença em um Deus único tal como entende a tradição abraâmica, a vida humana dissolver-se-ia na total anarquia. Bastaria extrapolar um pouco mais nesta direção para concluir que os ateus, os budistas e os animistas, por exemplo, deveriam se considerar representantes de aberrações humanas.

É a mesma tendência: ou direitos humanos ou caos.107 Semelhante deslize é facilmente evitável. A partir do momento em que uma doutrina ou uma cultura acreditem ser portadoras de uma mensagem “universal”, manifesta-se uma inevitável propensão a travestir como tais (como universais, N.T.) seus valores particulares. Desqualifica, assim, os valores dos outros, os quais concebe como enganosos, irracionais, imperfeitos ou simplesmente superados. Com a melhor das boas consciências, pois está convencida de falar em nome da verdade, professa a intolerância. “Uma doutrina universalista inevitavelmente evolui para formas equivalentes ao partido único”, dizia Lévi-Strauss108.

Em uma época em que a diversidade cultural e humana é a última coisa que a ideologia econômica e de mercado que domina o planeta nutre, a ideologia dos direitos retoma fraudulentamente, assim, os antigos discursos de dominação e aculturação. Ao acompanhar a expansão planetária do mercado, proporciona-lhe a roupagem “humanitária” que lhe faz falta. Já não é em nome da “verdadeira fé”, da “civilização”, do “progresso”, ou até mesmo do “pesado fardo do homem branco”109, que o Ocidente crê estar fundamentado para reger as práticas sociais e culturais existentes no mundo, mas em nome da moral encarnada pelo direito. A afirmação da universalidade dos direitos humanos, nesse sentido, não representa senão a convicção de que os valores particulares, os da civilização ocidental moderna, são os valores superiores que devem se impor em todas as partes. O discurso dos direitos permite ao Ocidente, mais uma vez, se elevar como juiz do gênero humano.

Ao identificar a defesa dos direitos humanos com a defesa dos valores ocidentais – escrevem René Gallisot e Michel Trebitsch – , uma nova ideologia, mais insidiosa e sutil, uma ideologia soft, permite substituir o maniqueísmo Leste-Oeste nascido da Guerra Fria por um maniqueísmo Norte-Sul, com o qual a liberdade ocidental  espera  refazer  sua virgindade.110 O modelo ocidental – observa, por sua vez, Sophia Mappa – […] deve se impor à humanidade como se estivesse dotado de uma objetividade natural que lhe assegura a superioridade sobre os outros. Segundo esta mesma ideia, os diversos sistemas sociais do globo seriam variantes do sistema ocidental cujos traços específicos deveriam desaparecer diante do avanço irresistível deste último à escala planetária […]. Para que o modelo ocidental conquiste o planeta seria necessário [então] que as outras sociedades  abandonassem conscientemente suas representações de mundo, seus valores, suas práticas sociais, suas instituições e seus símbolos culturais profundamente enraizados.111 Poderia acontecer de outra maneira? Podemos duvidar seriamente. Como escreve François Flahault:

Se o mundo ocidental quiser convencer o planeta sobre o bom fundamento dos direitos humanos tal como os concebeu, deve assumir os pressupostos antropológicos e teológicos que sustentam suas formulações (em particular, o uso específico do termo direitos na expressão “direitos humanos”). Se, pelo contrário, quiser evitar se apoiar em tais pressupostos, então deve reconhecer que as formulações que deu para tais direitos saem de sua própria tradição e tem valor universal só na medida em que apela a um sentimento moral compartilhado por todos os homens de boa vontade.112 De modo geral – dizia Raymond Aron – poder-se-ia estabelecer o seguinte dilema: ou bem os direitos alcançam uma espécie de universalidade porque toleram, graças à sua forma conceitual vaga, qualquer instituição, ou bem porque se preocupam com qualquer precisão e perdem sua universalidade.113 E conclui: “os direitos chamados universais não merecem esta qualificação a não ser sob a condição de serem formulados em uma linguagem a tal ponto vaga que perdem qualquer conteúdo definido”114.

François de Smet resume o mesmo dilema nos seguintes termos:

Ou nos resolvemos por um direito internacional débil, desprovido de substância, flexível à vontade – que respeita as concepções de todas as culturas humanas – e ineficaz; ou bem assumimos nossa posição de que nossa cultura – a dos direitos individuais, a do valor do indivíduo diante da coletividade – é superior às demais, cuja superioridade somente pode se afirmar arbitrariamente se julgarmos este predomínio moral mediante nossas próprias premissas.115 Refutar a universalidade da teoria dos direitos não significa, com efeito, que se tenha de aprovar qualquer prática política, cultural ou social, apenas porque existe. Reconhecer a livre capacidade dos povos e das culturas de se dar por si e a si mesmos as leis que desejam adotar, ou a conservar os costumes e as práticas que são suas, não significa automaticamente sua aprovação; permanece a liberdade de juízo, e é somente a conclusão que se extrai que pode variar. O mau uso que um indivíduo ou um grupo faz de sua liberdade conduz a condenar sua utilização, não a condenar tal liberdade. Não se trata de modo algum de adotar uma posição relativista – que é uma posição insustentável – mas uma posição pluralista. Existe uma pluralidade de culturas, e as culturas respondem de maneiras diferentes às aspirações que expressam. Algumas destas respostas podem nos parecer bem questionáveis. É perfeitamente normal condená-las – e rechaçarmos nós mesmos sua adoção. Faltaria ainda admitir também que uma sociedade não pode evoluir em um sentido que nós julgamos preferível só a partir de realidades culturais e de práticas sociais que não são suas. Essas respostas podem ser igualmente contraditórias. Deve-se reconhecer, então, que não existe uma instância relevante, um ponto de vista superior que abarque e permita sanar tais contradições.

Raimund Panikkar, por outro lado, demonstrou muito bem que se pode descobrir, sem dificuldade e em todas as culturas, os “equivalentes homomorfos” do conceito de direitos humanos, mas que tais equivalentes – na Índia a noção de dharma, na China a noção de li (rito) – não são nem “traduções” nem sinônimos, nem sequer são contrapartidas, mas apenas as formas próprias a cada cultura de responder a uma necessidade equivalente. Quando Joseph de Maistre, em uma passagem que se pode citar, diz que durante sua vida encontrou com homens de todos os tipos, mas que jamais viu o homem em si, ele não nega a existência de uma natureza humana. Ele apenas afirma que não existe uma instância em que tal natureza se deixa apreender em seu estado puro, independentemente de seu contexto particular: o pertencimento à humanidade está sempre mediado por uma cultura ou uma coletividade. Seria errado concluir que a natureza humana não existe: que a realidade objetiva é indissociável de qualquer contexto ou de qualquer interpretação não quer dizer que se reduz a este contexto; isso não significa outra coisa senão essa única interpretação.

O justo por natureza […] existe – salienta Eric Weil – mas é diferente em todos os lugares. Distinto por qualquer lugar, não é o mesmo em uma comunidade tradicional e em uma organização política de tipo tirânico ou no Estado de uma sociedade moderna.

Concluir que tal natureza só existe em nós seria absurdo, tão absurdo quanto seria afirmar que o problema do justo por natureza é sugerido ou tem sido ou devesse ser sugerido em todas as partes.116 Em Fragile Humanité117, Myriam Revault d'Allones propôs uma interessante fenomenologia do fato humano, não no sentido de uma construção dos demais pela esfera da subjetividade, mas a partir de uma perspectiva relacional que coloca antes de tudo o “sentido humano” como uma capacidade de intercambiar experiências. A humanidade – diz ela – não é uma categoria funcional, mas uma “disposição a habitar e a compartilhar o mundo”118. Podemos chegar à conclusão de que a humanidade não aparece como um dado unitário, mas sobre um fundo comum que compartilha.

terça-feira, 18 de março de 2025

América e Seus Nomes - Alberto Buela

 


Múltiplos e variados têm sido e são os diferentes modos de nomear nossa América. Assim, temos América Espanhola, Hispanoamérica, América Latina, Latinoamérica, Iberoamérica, Panamérica, Indoamérica, América Mestiça e outros, dependendo das categorias preconceituais com as quais o investigador ou estudioso se aproxime do tema da América. Sabemos que as palavras não são neutras, mas sim signos linguísticos que encerram conceitos que são explícitos ou subsequentes nos julgamentos... Vejamos, pois, qual acepção cada uma dessas denominações encerra.

LATINOAMÉRICA

O termo surge, antes de mais nada, como tradução direta do inglês LATIN AMERICA, que é o vocábulo utilizado, obviamente, pelos mass media planetários que encontram no inglês sua expressão cotidiana. Etimologicamente falando, o vocábulo LATINO em sua forma adjetiva carece de precisão para determinar nossa América, dado que não existe a tal "raça latina". Com justiça, pode-se afirmar a respeito: "No vocábulo tendenciosamente evocador do Lácio há uma artimanha para pescar em rio revolto. Quer-se incluir uma suposta presença de franceses, italianos, etc., no panorama, quando a epopeia americana foi especificamente espanhola, desde o descobrimento até a emancipação desses povos. Depois, houve aportes importantes de tipo imigratório, e inclusive cultural... Mas as raízes, as bases, estavam lançadas" (Cfr. Braulio Díaz Sáiz: El idioma nuestro de cada día). O uso do termo latino-americano não só não é correto, como também esconde um claro interesse político por parte dos centros históricos de poder mundial. É de destacar o sentido pejorativo que tem o vocábulo "latino" na América do Norte. Seu uso está tolerado simplesmente por sorte de força interna que outorga o uso massivo e reiterado de certos termos que imprimem na consciência popular os grandes mass media.

AMÉRICA LATINA

Provém da tradução do termo francês AMÉRIQUE LATINE, invenção francesa caprichosa e arbitrária que, apelando à "latinidade", tenta fazer valer sua pertença a um continente que lhe é completamente alheio. Sua gênese histórica a encontramos no sonho de Luís Napoleão a propósito da aventura mexicana do imperador Maximiliano, de formar parte de uma "Amérique Latine et Catholique". Ante a perda de seu poder político nesta parte do globo, os franceses continuam tentando compensar no cultural, apelando à "latinidade", sua influência em nossa América. O renomado escritor mexicano Carlos Fuentes confirma o assinalado em um artigo recente ao sustentar, referindo-se à cultura "dos povos de fala espanhola", que constituem, diz, "uma civilização que eu não chamaria latino-americana. Este é um conceito cunhado pelos franceses do século XIX para se incluírem a si mesmos". (Diário La Prensa, Buenos Aires, 18 de fevereiro de 1990). E o romeno Vintila Horia afirmou mais rotundamente: "a guerra intelectual contra a herança espanhola nas Américas culmina com a aceitação internacional do termo latino-américa" (Reconquista do descobrimento).

A respeito, já no século passado e não sem certo humor, Juan Valera escrevia: "o título América Latina soa mal ao promover a contraposição com a América Yanqui, que têm chamado de Anglosaxônica. Para que a contraposição fosse exata, convinha, se chamamos Anglosaxônica a uma América porque se apoderou dela a Inglaterra, um povo bárbaro chamado anglosaxão, chamar visigótica à outra América, porque outro povo bárbaro, chamado visigodo, conquistou a Espanha. Igual razão haveria para chamar aos Estados Unidos e ao Canadá América Normanda, com tal que a restante se chame moura ou berberisca" (Cfr. Cartas americanas). O emprego de América Latina para designar nossa região, além de ser incorreto, mascara uma vontade de poder totalmente alheia à nossa identidade e interesses.

PANAMÉRICA

O termo nasce a propósito da Conferência de Washington de 1889-1890, auspiciada pelos norte-americanos, ideário político que culmina na chamada "Visão Panamericana" (Conferência de Havana de 1928). Provém do grego PAN, que significa tudo, mais o substantivo América... O que, em bom romance, vem a significar "Toda a América... para os norte-americanos". Nesse sentido, um autor livre de toda suspeita de chauvinismo e nacionalismo como o liberal Salvador de Madariaga nos diz que "o termo Panamérica tem por sentido analógico o que outrora tinha o pangermanismo, isto é, de expansão, de influência dos Estados Unidos" (Passado e porvir da Hispanoamérica). Um pensador nacional da estatura de Manuel Ugarte comenta a respeito: "denuncia essa concepção política (o pan-americanismo) uma habilidade do expansionismo do Norte, com uma tendência suicida da ingenuidade do Sul... O pan-americanismo e a doutrina Monroe são duas manifestações de uma mesma política, favorável exclusivamente a um dos países contratantes" (O destino de um continente, Madrid, 1923, pág. 419).

INDOAMÉRICA

O termo quer indicar que "o índio" é o único traço pelo qual se pode caracterizar propriamente nossa América. Indica um retorno às origens ancestrais da mesma. Preconceitualmente, o vocábulo encerra uma negação de tudo o que é hispânico e tenta anular, em definitiva, os últimos quinhentos anos de história americana. Sua primeira formulação ideológica foi realizada pelo boliviano Franz Tamayo, que lá por 1910 chegou a afirmar, entre outras coisas, que: "A verdadeira nobreza, a superioridade de energia e vigor estava, como está, no autóctone da América. E o branco? Se ainda existe nativo puro entre nós, entendemos que rende e renderá sempre tão pouco que será muito próximo a nada". Inclusive arbitrariedades que provocam hilaridade, como quando escreve que: "No yankee nativo, apesar de todas as aparências, ressuscita o pele-vermelha… A audácia, temeridade yankee não são inglesas, Lynch tampouco. A Europa tradicional não oferece nada semelhante: o pele-vermelha sim". (Criação da Pedagogia Nacional). Torna-se proposta política através das formulações de Víctor Haya de la Torre mediante o Apra peruano pela década de 30, e atualmente é reivindicado pelo denominado "marxismo das Índias" e pelos "antropólogos progressistas" chegados a nossas terras desde a sociedade opulenta. Existem, além disso, matizes nascidos a partir da ideia de indianidade, como são as noções de EURÍNDIA, criada por Ricardo de Rojas (Euríndia, Buenos Aires, 1924), ou de AMERÍNDIA, utilizada por Luis Valcárcel (Mirador Índio, Lima, 1937/41).

AMÉRICA MESTIÇA

Esta denominação busca indicar que a identidade de nossa América se encontra na fusão de diferentes raças. José Vasconcelos foi o primeiro e mais fervoroso representante da teoria do mestiçado. Identificou a raça mista como a raça cósmica, a que inauguraria um novo ciclo da história do mundo, produzido pelos melhores da melhor cepa (Cfr. Raça Cósmica). A noção do mestiçado vem sendo utilizada com assiduidade nos ambientes cristãos para o acesso à nossa identidade. Não só cremos que o termo é pouco feliz, pois mestiço é uma palavra que encerra uma primigênia conotação racial e um matiz pejorativo; pois significa, antes de mais nada, híbrido (Cfr. Oxford English Dictionary). Trazemos à colação Luis de Zulueta quando escreve: "a união de raças é o que comumente se chama mestiçado; palavra pouco feliz porque, além de não ser castiça, tem certo matiz pejorativo para designar um fato biológico que, por outra parte, pode ser estimado como de alto valor moral e social" (Cfr. O rapto da América). Como anedota, recordamos que uma publicação italiana "L'Uomo Libero" Nº22, nos traduziu mistura como "mescolanza". O termo correto para indicar esta realidade seria simbiose: do grego "syn": com + "bios": vida. O que indica o produto autônomo —o homem americano— de duas cosmovisões diferentes —o católico ou baixo medieval e o índio ou telúrico—.

AMÉRICA ESPANHOLA, AS ESPANHAS OU ESPANHA ULTRAMARINA

São as denominações utilizadas pelos espanhóis para nomear estas terras da América. Sua utilização estava dirigida a remarcar o caráter possessivo que a Espanha outorgava a seus "reinos" da América. Com o advento das independências nacionais, foi, paulatinamente, deixada de lado para ser substituída por Hispanoamérica. Ainda que hoje haja autores que a prefiram, como o caso de Julián Marías quando escreve: "Minha preferência pessoal vai, contudo, para outro termo que inclui também meu país: As Espanhas. Nenhum nome traduz melhor a unidade e multiplicidade desta América, nenhum expressa mais adequada e profundamente a vivência radical que tem o espanhol aí: a de estar na Espanha, sim, mas em outra, e creio que é a mesma do hispano-americanismo em outro destes países que não é o seu, mas tampouco 'estrangeiro'". (Sobre Hispanoamérica, Emecé, Buenos Aires, 1973).

HISPANOAMÉRICA

É o termo utilizado por todos aqueles que, ao dizer de José Vásquez Márquez, buscam entender nossa América em "chave Hispânica". Isto é, privilegiando o hispânico sobre os componentes que fazem à nossa identidade. O representante mais conspícuo desta posição tem sido o poeta nicaraguense Rubén Darío, poetizando assim: E sempre fui, por alma e por cabeça, espanhol de consciência, obra e desejo; e já nada concebo e nada vejo senão espanhol por minha natureza. O termo hispano-américa pode suscitar, à primeira vista, uma exclusão do Brasil; porém, nada mais errôneo. Os mesmos portugueses assim o têm reconhecido: "Um agente fortíssimo da Espanha" para Camões, o autor de OS LUSÍADAS. Almeida Garret nos diz por sua parte: "somos hispânicos e devemos chamar hispânicos a quantos habitamos a península hispânica". Isto é, o termo hispano-américa não exclui a tradição portuguesa, fonte principalíssima do Brasil e sua língua. O certo é que a noção de hispano-américa tenta resgatar o laço de união e pertença entre a Espanha e a América, e vice-versa.

IBEROAMÉRICA

O termo é proposto com o único propósito de "incluir inequivocamente" o Brasil e sua herança portuguesa como elemento substantivo de nossa América. Mas, como acabamos de ver, o vocábulo ibero é conversível com o de hispano. Embora caiba reconhecer que o termo ibero possui uma conotação mais geográfica que filosófica ou cultural, tal como menciona o de hispano.

ÍNDIAS OU ÍNDIAS OCIDENTAIS

É o primeiro termo para designar a América, posto que foi seu descobridor, Cristóvão Colombo, quem assim denominou nosso continente. Daí se deriva o patronímico genérico de seus habitantes aborígenes: Índios... Os espanhóis e portugueses continuaram, bem entrado o século XVIII, chamando Índias Ocidentais a esta parte do mundo. Temos inclusive o caso de Volney, que dedicou suas Ruínas de Palmira, publicadas em 1791, "Aos povos nascentes das Índias Castellanas". O nome "de Novo Mundo" foi introduzido por Pedro Mártir de Anglería (alter Orbis, Mundo Novo). Como reação à denominação de América devida ao cartógrafo Hylocompylus (de hylé= matéria e compilare: compilar), Frei Bartolomé de las Casas propôs o nome de Columba, também foram propostos os nomes de Colonásia por Reclus, Columbiana por Solórzano e Pereyra, Fer-Isabélica por Fernando Pizarro, mas nenhum deles finalmente prosperou. Neste recenseamento dos modos de chamar nossa América, encontramos, também, as denominações América Meridional, setentrional, do sul ou do sud, austral, sudcentroamericana, as quais são apenas denominações de caráter geográfico, com sentido unívoco. Finalmente, nós cremos que o termo mais adequado para indicar esta busca de nossa denominação é simplesmente o de "americanos", mal que lhes pese aos mal chamados "norte-americanos", que são os que se têm apropriado do termo. E dizemos que devemos autodeterminar-nos e ser chamados "americanos" não só porque assim o fizeram nossos pais fundadores: San Martín, Bolívar e nossos homens da independência, que sabiam o que eram e se preferiram a si mesmos, senão porque só nós temos fecundado a América, pois provimos da fusão de duas cosmovisões: "A telúrica ou índia" e "A católica ou baixo medieval", que não foi outra coisa senão o que a Europa e o Mediterrâneo tiveram de melhor. O caráter de "americanos" não faz acepção de origens, senão de pertença; podem ser e são de fato diferentes as origens, alemães, italianos, árabes, portugueses, espanhóis, russos, etc., mas a pertença à América é o que nos determina. Agora, claro está, pertencer supõe arraigar-se, lançar raízes, fundar uma progênie, instaurar e compartilhar valores. Tudo isto supõe o cultivo da América para a criação de uma cultura, que por ser própria seja diferente e alternativa à cultura universal e homogênea que se nos quer impor. Se algo deve ser lançado em rosto à conquista anglo-saxônica é o haver sido um transplante cruento por eliminação do autóctone, da cultura máquera e protestante da Inglaterra do século XVII. Inversamente, se algo maravilhou à colonização espanhola e às diferentes ondas imigratórias tem sido e é a fusão com o autóctone, além dos casos de eliminação e exploração que certamente houve. Mas isto não ocorreu como "um destino manifesto", como finalidade específica da colonização espanhola da América, senão como fenômenos colaterais e acidentais da colonização de nosso continente. Esta interpretação da consciência americana como produto, por fusão e não por mistura, de dois elementos completos em si mesmos: as cosmovisões "baixo medieval" e "autóctona", deu por resultado um todo natural em si mesmo, a consciência americana, analogamente diferente aos elementos de que está composta. Isto é, produziu um todo autônomo e diferente tanto em relação à consciência imigratória, qualquer que seja a latitude de onde proveio, como em relação à consciência índia ou telúrica.

domingo, 9 de março de 2025

O Multipolarismo - Alexander Dugin

 

1. Multipolarismo: Definição e Diferenciação de Significados

Dum ponto de vista estritamente científico, até à data não existe qualquer teoria plena e detalhada acerca da T eoria do Mundo Multipolar (TMM). T al também não se encontra entre as teorias e paradigmas clássicos das Relações Internacionais (RI). Procuraríamos em vão por esta por entre as mais recentes teorias pós-positivistas. Para o efeito é desenvolvida no seu aspecto mais flexível e sintetizado – na esfera da investigação geopolítica, que abrange cada vez mais essas temáticas que são “deixadas de fora” ou tratadas de modo preconceituoso no que às relações internacionais diz respeito.

Contudo, surgem cada vez mais obras nos campos dos negócios estrangeiros, da política mundial, da geopolítica e, até, das relações internacionais dedicadas à temática da multipolaridade. Um número cara vez maior de autores tenta compreender e descrever a multipolaridade, seja como modelo, fenómeno, precedente ou como possibilidade.

O tema da multipolaridade tem sido, de algum modo, abordado nas obras de David Kampf, especialista em RI (no seu artigo “Emergência de um mundo multipolar”), do historiador Paul Kennedy, da Universidade de Yale (no seu livro “Ascensão e Queda das Grandes Potências”), do geopolitólogo Dale Walton (no seu livro “Geopolítica e as Grandes Potências do Séc. XXI. A Multipolaridade e a Revolução do Ponto de Vista Estratégico”) e o cientista político americano Dilip Hiro (na sua obra “Depois do Império. O Nascimento de um Mundo Multipolar”), entre outros. O que mais se aproximou, no nosso entender, da compreensão do sentido da multipolaridade foi Fabio Petito, especialista britânico em RI, que tentou elaborar uma alternativa séria e substancial ao mundo unipolar com base nos preceitos legalistas e filosóficos de Carl Schmitt.

Uma “ordem mundial multipolar” é também uma presença frequente nos discursos e nos textos de algumas personalidades políticas e de alguns jornalistas influentes.

Assim sendo, a Secretária de Estado Madeleine Albright, que inicialmente apodava os Estados Unidos de “nação indispensável”, a 2 de Fevereiro de 2000 afirmou que os EUA não queriam “estabelecer nem forçar” um mundo unipolar e que a integração económica já tinha criado “um determinado mundo que já pode ser chamado de multipolar”. A 26 de Janeiro de 2002, na coluna editorial do “New York Times” falava-se abertamente da “emergência de um mundo multipolar” juntamente com a China, que “agora se senta à mesa juntamente com outros centros de poder, tais como Bruxelas ou T óquio”. A 20 de Novembro de 2008, o relatório “T endências Globais para 2025”, do Conselho Nacional de Informação dos EUA, indicava que seria de esperar nas dentro de duas décadas a emergência de um “sistema multipolar global”.

Desde 2009 que Barack Obama, o presidente dos EUA, tem sido visto por muitos como o precursor de uma nova “era multipolar”, acreditando que este irá dar prioridade, no que à política externa dos EUA diz respeito, às potências emergentes, tais como o Brasil, a China, a Índia e a Rússia.

A 22 de Julho de 2009, durante a sua visita à Ucrânia, o vice-presidente Joseph Biden afirmou o seguinte: “estamos a tentar construir um mundo multipolar”.

Contudo, nenhum destes livros, artigos e afirmações contém uma definição concisa acerca da realidade de um mundo multipolar (MM), nem, sequer, uma teoria coerente e consistente para a sua construção (TMM). O tratamento mais comum do “multipolarismo” indica meramente que, no actual processo de globalização, o incontestado centro nuclear do mundo moderno (EUA, Europa e um “Ocidente global” no sentido mais amplo) se defrontam com novos concorrentes – potências regionais prósperas ou meramente influentes e blocos de poder, pertencentes ao “segundo” mundo. A comparação de força entre as potências dos EUA e da Europa, por um lado, e das novas potências ascendentes (China, Índia, Rússia, América Latina, etc.), pelo outro, demonstram cada vez mais a relatividade da tradicional superioridade do Ocidente e colocam novas questões acerca da lógica dos processos que determinam a arquitectura global das forças à escala planetária – seja na política, na economia, na energia, na demografia, na cultura, etc.

T odos estes comentários e observações são cruciais para a construção da T eoria do Mundo Multipolar, mas de nenhum modo destacam a sua ausência. Devem ser considerados aquando da elaboração de tamanha teoria, mas de nada vale a sua natureza fragmentada e desigual, não chegando sequer ao nível primário de uma hipotética generalização conceptual.

Mas, pese embora tudo isto, ouvimos cada vez mais a menção de uma ordem mundial multipolar em cimeiras oficiais, em congressos e em conferências internacionais.

Os laços à multipolaridade encontramse já presentes num número importante de acordos intergovernamentais e nos textos conceituais das estratégias de segurança e defesa de certos países influentes e poderosos (China, Rússia, Irão, parte da UE). Assim sendo, hoje, mais do que nunca, torna-se crucial dar o passo em frente para o pleno desenvolvimento da T eoria do Mundo Multipolar, de acordo com os requisitos básicos do campo académico.

A Multipolaridade não Coincide com o Modelo Nacional da Organização Mundial Enraizado na Lógica do Sistema Westphaliano

Antes de avançarmos para a construção detalhada da T eoria do Mundo Multipolar (TMM), devemos caracterizar solidamente a área conceptual investigada. Para tal, iremos considerar os conceitos base e definir aquelas formas da ordem global mundial, que temos a certeza de não serem multipolares, em relação às quais a multipolaridade é uma alternativa.

Comecemos pelo sistema Westphaliano, que reconhece a soberania absoluta do Estado-nação e constrói sobre este toda a base legal das Relações Internacionais. Este sistema, desenvolvido depois de 1648 (o fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa), passou por diversos estágios e, de certo modo, reflectia a realidade objectiva até ao final da Segunda Guerra Mundial. Nasceu com a rejeição das reivindicações de universalismo e de “missão divina” dos impérios medievais, e assentava com as reformas burguesas ocorridas nas sociedades europeias, com base no preceito de que só um Estado nacional possuí a mais alta soberania e de que fora deste não pode existir qualquer instância que tenha o direito legal de interferir na política interna desse Estado – sejam quais forem os objectivos e propósitos (religiosos, políticos ou outros) que o guiem. Do final do século XVII até meados do século XX, este princípio predeterminou a política europeia e, de igual modo, embora com certas emendas, foi adoptado por outros países do mundo.

O sistema Westphaliano dizia originalmente respeito apenas às potências europeias, bem como às suas colónias, que eram vistas como uma mera continuação dessas potências, não possuindo o necessário potencial político económico necessário para a pretensão a uma soberania independente. Desde princípios do século XX, durante a descolonização, o mesmo princípio Westphaliano estendeu-se às ex-colônias.

Este modelo Westphaliano pressupõe uma igualdade absoluta entre todos os Estados soberanos. Neste modelo existem tantos pólos decisores de negócios estrangeiros quantos Estados soberanos existam no mundo. Esta regra (padrão) ainda vigora, por inércia, e toda a lei internacional nela se baseia.

Mas na prática, claro está, há uma desigualdade e uma subordinação hierárquica entre os vários Estados soberanos. Na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais a distribuição do poder entre as principais potências mundiais levou ao confronto entre blocos separados, nos quais as decisões eram tomadas no país que mais influência detinha entre os seus aliados.

Como resultado da Segunda Guerra Mundial, devido à derrota da Alemanha nazi e das potências do Eixo, o sistema global desenvolveu um sistema bipolar de relações internacionais, o chamado Sistema Bipolar de Ialta. A lei internacional de jure continuou a reconhecer a soberania absoluta de todo e qualquer Estado-nação. De facto, as decisões de base acerca dos assuntos mais importantes da ordem mundial e da política global eram tomadas apenas por dois centros – Washington e Moscovo.

O mundo multipolar difere do sistema Westphaliano clássico devido ao facto de que não reconhece ao Estado-nação individual, legalmente e formalmente soberano, o estatuto de um pólo de pleno direito. Isto significa que o número de pólos de um mundo multipolar devia ser substancialmente inferior ao número de Estados-nação reconhecidos (e não reconhecidos). A vasta maioria desses Estados não consegue actualmente tratar da sua própria segurança nem da sua prosperidade perante o conflito teoricamente possível com a potência hegemónica (que no nosso mundo está claro serem os EUA). Assim sendo, encontram-se política e economicamente dependentes de uma autoridade externa. Sendo dependentes, não podem ser centros de uma vontade verdadeiramente independente e soberana no que diz respeito às questões globais da ordem mundial.

O multipolarismo não é um sistema de relações internacionais, que insiste em que a igualdade legal entre os Estados-nação é contemplada como sendo o real estado das relações. Trata-se meramente da fachada de uma visão muito diferente do mundo, tendo por base o balanço real do poder em vez do balanço nominal das forças e das capacidades estratégicas.

O multipolarismo lida com a situação que exista de facto e não de jure, tendo por origem a constatação da desigualdade fundamental entre os Estados-nação num modelo de mundo moderno e empiricamente fixável. Mais, a estrutura desta desigualdade é a de que as potências secundárias e terciárias não têm como defender a sua soberania perante o desafio externo da potência hegemónica, qualquer que seja a efémera constituição do bloco. Isto significa que, actualmente, essa soberania não passa de uma ficção legal.

Multipolarismo não é Bipolarismo

Após a Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se um sistema bipolar no mundo, também baptizado de Sistema Bipolar de Ialta. Formalmente, continua a insistir no reconhecimento da absoluta soberania de todos os Estado e, com base neste princípio, organizou-se a ONU, que continuou o trabalho da Liga das Nações. Contudo, na prática, no mundo surgiram dois centros de decisão global – Os EUA e a URSS. Os EUA e a URSS foram dois sistemas político-económicos alternativos: ou seja, o capitalismo global e o socialismo global, de modo que o bipolarismo estratégico tinha por base no dualismo ideológico e filosófico – o liberalismo versus o marxismo.

O mundo bipolar tinha por base a paridade económica, militar e estratégica dos EUA e da URSS, na comparação simétrica do potencial de cada um dos campos opostos. Ao mesmo tempo, nenhum outro país fosse em que campo fosse tinha o potencial acumulativo, nem sequer o mais remotamente, comparável ao poderio de Moscovo ou de Washington. Consequentemente, à escala global existiam duas hegemonias, cercadas por uma constelação de países aliados (semivassalos no sentido estratégico). Neste modelo, a soberania nacional dos países, que era formalmente reconhecida, perdia gradualmente o seu peso.

Antes de mais, todos os países estavam dependentes da política global dessa hegemonia no que dizia respeito à zona de influência a que pertenciam. Assim sendo, não eram independentes e os conflitos regionais (normalmente potenciais em zonas do T erceiro Mundo) rapidamente escalavam para um conflito entre as suas superpotências, ansiando redistribuir o balanço da influência planetária aos “territórios em disputa”. T al explica os conflitos na Coreia, no Vietname, em Angola, no Afeganistão, etc.

No mundo bipolar, existia também uma terceira força – o Movimento dos Não-Alinhados. Consistia de alguns países do T erceiro Mundo que recusavam optar inequivocamente em favor fosse do capitalismo ou do socialismo e que preferiam manobrar-se por entre os interesses antagónicos dos EUA e da URSS. Em certa amplitude, alguns conseguiram fazê-lo, mas a possibilidade de um nãoalinhamento em si própria parte do pressuposto da existência de dois pólos, que em determinado grau de contrabalanceiam um ao outro. E estes “países não-alinhados” não conseguiram de qualquer modo criar um “terceiro pólo”, condescendendo com os principais parâmetros das super-potências, estando demasiado fragmentados e não se consolidando uns com os outros, sem uma plataforma socioeconómica comum. O mundo estava dividido entre o Ocidente capitalista (o Primeiro Mundo, o Ocidente), o Leste socialista (o Segundo Mundo) e “o resto” (o T erceiro Mundo), para além disso “todos os outros” representavam em todos os sentidos a periferia do mundo, na qual ocasionalmente se encontravam os interesses das super-potências. Entre as super-potências, propriamente deitas, a probabilidade de conflito estava praticamente posta de parte devido à paridade (a mútua aniquilação causada pelas armas nucleares). As áreas preferenciais para uma revisão parcial do balanço de poder eram os países periféricos (na Ásia, na África e na América Latina).

Após a queda de um dos dois pólos (a União Soviética colapsou em 1991), caiu também o sistema bipolar. T al criou as condições prévias necessárias ao advento de uma ordem mundial alternativa. Muitos analistas e especialistas em RI falam acertadamente acerca “do fim do sistema de Ialta” Reconhecendo a soberania de jure, a Paz de Ialta foi construída de facto com base no princípio do balanço entre as duas hegemonias simétricas e relativamente equilibradas. Com a saída de cena de uma das hegemonias, todo o sistema deixou de existir. Tinha chegado a altura de uma ordem mundial unipolar, ou o “momento unipolar”.

Um mundo multipolar não é um mundo bipolar (tal qual o conhecemos na segunda metade do século XX), uma vez que no mundo actual não há qualquer potência que consiga por si só resistir ao poder estratégico dos Estados Unidos e dos países da OTAN, para além disso não existe qualquer ideologia generalizada e coerente capaz de unir grande parte da humanidade numa oposição duramente ideológica à ideologia da democracia liberal, do capitalismo e dos “direitos humanos”, nas quais se baseia a nova, e única, hegemonia dos Estados Unidos. Nem a Rússia moderna, nem a China, nem a Índia, nem qualquer outro Estado, conseguem sozinhos ter a pretensão de atingir o estatuto de segundo pólo. A recuperação do bipolarismo é impossível graças a razões ideológicas (o fim do apelo generalizado do marxismo), e graças ao poderio e recursos técnicos e militares acumulados (os EUA e os países da OTAN nos últimos 30 anos atingiram um nível tal que é impossível a qualquer país competir com eles nas esferas militar, estratégica, económica e técnica).

O Multipolarismo não é Compatível com um Mundo Unipolar

O colapso da União Soviética significou o desaparecimento de uma super-potência simétrica e influente bem como ainda o desaparecimento de um gigantesco campo ideológico. Foi o fim de uma das duas hegemonias globais. T oda a estrutura da ordem mundial daí para a frente tornou-se irreversivelmente e qualitativamente diferente. Com isto o pólo remanescente – liderado pelos Estados Unidos e tendo por base a ideologia liberal-democrata capitalista – preservou-se fenomenalmente e continuou a expandir o seu sistema sociopolítico (democracia, mercado, ideologia dos direitos humanos) a uma escala global. É precisamente a isto que se chama mundo unipolar, a ordem mundial unipolar. Em tal mundo há um só centro decisor a tratar de todas as grandes questões globais. O Ocidente, e o seu núcleo, a comunidade Euro-Atlântica, liderados pelos Estados Unidos, encontram-se no papel da única hegemonia possível. T odo o espaço planetário neste cenário não passa de uma tripla regionalização (descrita em pormenor na teoria neo-marxista de E. Wallerstein):

- Zona núcleo (“Norte rico”, “centro”).

- Periferia mundial (“Sul pobre”, “periferia”).

- Zona de transição (“semi-periferia”, inclui os principais países que actualmente se desenvolvem em direcção ao capitalismo: China, Índia, Brasil, alguns países do Pacífico, bem como a Rússia, que por inércia mantém um significativo potencial estratégico, económico e energético).

Nos anos 90 aparentemente já se tinha conseguido estabelecer um mundo unipolar, e alguns analistas dos EUA com base nisto proclamaram a tese do “fim da História” (Fukuyama). Esta tese defendia que o mundo se encontrava ideologicamente, politicamente, economicamente e socialmente homogeneizado e que doravante todos os processos que nele ocorram não decorrerão de um drama histórico que tenha por base o combate das ideias e dos interesses, mas tão só a concorrência económica (relativamente pacífica) dos membros do mercado – semelhante à construção da política interna dos regimes democráticos liberais. A democracia torna-se global. No planeta existem apenas o Ocidente e os seus arredores, ou seja, aqueles países que gradualmente nele se irão integrar.

A concepção mais detalhada da teoria do unipolarismo foi apresentada pelos neo-conservadores americanos, que realçam o papel dos EUA na nova ordem mundial global, por vezes louvando abertamente os Estados Unidos – o “Novo Império” (R. Kaplan), “benévola hegemonia mundial” (U. Kristol, R. Keygan) antecipando a ofensiva do “Século Americano” (Projecto Para um Novo Século Americano). O unipolarismo obteve o seu fundamento teórico no neoconservadorismo. A futura ordem mundial era vista como sendo uma construção americanocêntrica, em cujo núcleo se encontram os EUA no papel de árbitro global e personificação dos princípios da “liberdade e da democracia”, em torno deste núcleo estruturase uma constelação de outros países que reproduzem o modelo americano, variando apenas no grau de rigor com que o reproduzem. Variam tanto no campo geográfico quanto no grau de semelhança para com os Estados Unidos:

- No círculo interno – os países da Europa e o Japão.

- Depois, os países liberais e prósperos da Ásia.

- Por fim, todos os outros.

T odas as zonas, situadas em torno da “América Global” em diferentes órbitas, são incluídas no processo de “democratização” e “americanização”. A disseminação dos valores americanos vai a par com a implementação prática dos interesses americanos e com a expansão das zonas de influência directa americana a uma escala global.

A nível estratégico, a unipolaridade expressa-se no papel predominante dos EUA na OTAN bem como na superioridade assimétrica das capacidades militares dos países da OTAN, quando comparadas com todas as nações do mundo.

Em paralelo a tudo isto, o Ocidente ultrapassa os restantes países não-ocidentais em potencial económico, nível de desenvolvimento de tecnologia de ponta, etc. E o mais importante: o Ocidente é a matriz, onde historicamente foram criados e estabelecidos os sistemas de normas e valores que são agora vistos como o padrão universal por todos os países do mundo. Podemos referir-nos a isto como hegemonia intelectual global que, por um lado, mantém a estrutura técnica do controlo global e, por outro, se encontra no centro do paradigma predominante do planeta. A hegemonia material faz par com a hegemonia espiritual, intelectual, cognitiva, cultural e informativa.

Por princípio, a elite política americana guia-se precisamente pela consciência que tem desta abordagem hegemónica, contudo isto é mais claro e transparente entre os neo-conservadores, enquanto os representantes de outras orientações políticas e ideológicas preferem expressões mais dinâmicas. Nem sequer os críticos do mundo unipolar existentes nos Estados Unidos desafiam este princípio da “universalidade” dos valores americanos e anseiam a sua aprovação ao nível global. A objecção tem por base o realismo da extensão deste projecto a médio ou a longo prazo e a dúvida acerca dos EUA serem capazes de aguentarem sozinhos o império global.

O desafio a um domínio americano tão aberto e directo, que aparentava ser um fait accompli nos anos 90, levou alguns analistas americanos (um deles Charles Krauthammer, que criou o conceito) a falar acerca do fim do “momento unipolar”.

Mas, apesar de tudo, foi exactamente a unipolaridade, de uma forma ou outra – de forma assumida ou camuflada – o modelo para a ordem mundial, que se tornou numa realidade depois de 1991, e assim permanece até hoje.

Na prática, a unipolaridade vem a par com a salvação nominal do sistema Westphaliano com os resíduos inertes do mundo bipolar. A soberania de jure de todos os Estados-nação é ainda reconhecida, e o Conselho de Segurança da ONU ainda reflecte um balanço parcial do poder, correspondente às realidades da “Guerra Fria”. Assim sendo, a hegemonia americana de facto encontra-se presente juntamente com uma série de instituições internacionais, que exprimem o balanço do poder de outras eras e ciclos da História das relações internacionais. As contradições entre as situações de facto e de jure recordam-nos constantemente a sua condição, principalmente quando surgem actos de intervenção directa por parte dos EUA ou de alguma coligação ocidental contra outros Estados soberanos (por vezes ignorando o veto de tais acções por parte do Conselho de Segurança da ONU). Em tais casos, como a invasão do Iraque por tropas dos EUA em 2003, vemos o exemplo de uma violação unilateral do princípio da soberania de um Estado independente (ignorando o modelo westphaliano), a recusa em levar em conta a posição da Rússia (de Vladimir Putin) no Conselho de Segurança da ONU e até do desrespeito de Washington pelos protestos dos parceiros europeus da OTAN (Jacques Chirac, da França e Gerhard Schroeder, da Alemanha).

Os apoiantes mais consistentes da unipolaridade (por exemplo, o republicano John McCain) insistem no reforço da ordem internacional alinhada com o balanço real das forças. Propõem a criação de um modelo um tanto ou quanto diferente do da ONU – “Liga das Democracias”, no qual a posição dominante dos EUA, ou seja o unipolarismo, tenha sido legislada. T amanho projecto de legalização estrutural das relações internacionais da hegemonia americana pósIalta, a legalização de um mundo unipolar e do estatuto hegemónico do “Império Americano” – é uma das possíveis vias da evolução do sistema político global.

Salta à vista que a ordem mundial multipolar não só difere da unipolar, como é a sua directa antítese. A unipolaridade pressupõe uma hegemonia e um centro decisor, a multipolaridade insiste nuns quantos centros, não detendo nenhum deles direitos exclusivos e é concebida para ter em conta as posições de terceiros. Assim sendo, a multipolaridade é a alternativa lógica e directa à unipolaridade. Não pode haver qualquer compromisso entre ambas: sob as leis da lógica – o mundo é unipolar ou multipolar. Aqui o importante não é a particularidade legal do modelo adoptado, mas o que é de facto. Na era da “Guerra Fria” os diplomatas e os políticos reconheciam, relutantemente, a “bipolaridade” que, contudo, era um facto óbvio. Assim sendo, é necessário separar a linguagem diplomática da realidade concreta. O mundo unipolar – é a real ordem mundial até à data. Só podemos afirmar se é boa ou má, se nos encontramos na sua alvorada ou, alternativamente, no seu declínio, se irá demorar muito tempo ou se, pelo contrário, irá acabar rapidamente. Mas permanece o facto. Vivemos num mundo unipolar. O momento unipolar ainda permanece (embora alguns analistas estejam convictos de quem está a chegar ao seu fim).

O Mundo Multipolar não é um Mundo Apolar

Os críticos americanos da unipolaridade estrita, em especial os rivais ideológicos dos neo-conservadores, concentrados no “Conselho de Relações Externas”, propõem outro termo em vez de unipolarismo – não-polarismo. Este conceito tem por base a sugestão de que os processos de globalização irão continuar a desenrolar-se e que o modelo ocidental da ordem mundial irá expandir a sua presença a todos os países e povos da T erra. Assim sendo, a hegemonia intelectual e a hegemonia dos valores do Ocidente irá continuar. O mundo global será o mundo do liberalismo, da democracia, do livre mercado e dos direitos humanos. Mas o papel dos EUA como potência nacional e bastião da globalização, de acordo com os defensores desta teoria, irá diminuir. Em vez de uma hegemonia directamente americana, irá emergir um modelo de “governo mundial”, no qual participarão os representantes de vários países, defendendo os valores comuns e tentando estabelecer um só espaço económico e socioeconómico em todo o mundo. Aqui, uma vez mais, nos deparamos com uma analogia ao “fim da História” de Fukuyama, descrito por outras palavras.

O mundo apolar terá por base a cooperação entre países democráticos (por defeito). Mas o processo de formação irá incluir, gradualmente, outros intervenientes não-estatais – ONGs, movimentos sociais, grupos isolados de cidadãos, comunidades em rede, etc

A principal prática na construção do mundo apolar é a dissipação do poder decisor de uma única instância (actualmente Washington) para muitas instâncias de nível inferior – indo ao extremo de referendos planetários, de modo online, acerca dos maiores eventos e acções de toda a humanidade

A economia irá governar sob a política e a competição dos mercados irá varrer todas as barreiras alfandegárias do mundo. A preocupação acerca da segurança do Estado será entregue aos cidadãos. Será a era da democracia global

Esta teoria coincide com as principais características da teoria da globalização que nos surgem num estado tal, capaz de substituir o mundo unipolar. Mas só com base na condição de que o modelo tecnológico e económico (a democracia liberal) bem como o modelo dos valores promovidos hoje pelos EUA e pelos países ocidentais se irão transformar num fenómeno universal e que já não será necessária uma protecção estrita dos ideais democráticos e liberais dos EUA – todos os regimes, resistentes ao Ocidente, à democratização e à americanização já terão sido eliminados aquando do advento do mundo apolar

A elite será semelhante em todos os países, homogénea, capitalista, liberal e democrata – ou seja, “ocidental”, seja qual for a sua origem histórica, geográfica, religiosa e nacional

O projecto de um mundo apolar é apoiado por muitos políticos influentes e por grupos financeiros – dos Rothschild até George Soros e as suas fundações

Este projecto apolar tem em vista o futuro. Pensa o como e o quando de uma formação global, que irá substituir o unipolarismo, será estabelecida. Não se trata de uma alternativa, mas de uma continuação. E esta continuação só será possível quando o centro decisor da sociedade se mover da actual aliança entre dois níveis de hegemonia – material (o complexo militar industrial americano, a economia e os recursos ocidentais) e espiritual (padrões, procedimentos, valores) – para uma hegemonia puramente intelectual, à qual se junta a redução gradual da importância do domínio material

Trata-se, nomeadamente, da sociedade da informação global, na qual os principais processos de domínio e decisão farão parte do campo dos serviços de informação, do controlo mental e da programação do mundo virtual

O mundo multipolar não pode ser combinado com o modelo do mundo apolar, uma vez que não aceita a validade do momento unipolar como prelúdio de uma futura ordem mundial, tal como não aceita nem a hegemonia intelectual do Ocidente, nem a universalidade dos seus valores, nem a dissipação das decisões numa multiplicidade planetária, não importa qual a sua identidade cultural e civilizacional. O mundo apolar sugere que o modelo do cadinho [melting pot] americano se irá estender a todo o mundo. Consequentemente, isto irá eliminar todas as diferenças entre povos e culturas e a humanidade, individualizada e atomizada, será transformada numa cosmopolita ‘sociedade civil’ sem quaisquer fronteiras. O multipolarismo pressupõe que os centros decisores sejam suficientemente relevantes (mas não dependentes de uma única instância – como nas actuais condições do mundo unipolar) e que as especifidades culturais de cada civilização sejam preservadas e fortalecidas (e não dissolvidas numa só multiplicidade cosmopolita)

Multipolaridade não é o Mesmo que Multilateralismo

Outro modelo de ordem mundial, um tanto ou quanto distanciado da hegemonia directa dos EUA, é o mundo multilateral (multilateralismo). Este conceito encontra-se muito disseminado no seio do Partido Democrata dos EUA, e foi formalmente adoptado pela política externa da administração do presidente Obama. No contexto dos debates acerca da política externa americana, esta abordagem opõe-se ao unipolarismo, no qual insistem os neoconservadores.

Na prática, o multilateralismo defende que os EUA não devem agir no campo das relações internacionais fiando-se apenas no seu poderio, arrastando de modo autoritário todos os seus aliados e “vassalos”. Pelo contrário, Washington deve ter em consideração a posição dos seus parceiros, persuadi-los e debater as suas soluções dialogando com eles, trazendo-os para o seu lado por intermédio da argumentação racional e, por vezes, propostas de compromisso.

Em tal situação os Estados Unidos seriam os “primeiros entre os iguais” em vez do “ditador entre os seus subordinados”. Isto impõe que a política externa dos Estados Unidos certas obrigações para com os seus aliados nas políticas globais e exige a obediência a uma estratégia mais ampla. Neste caso, essa estratégia mais ampla é a estratégica ocidental de estabelecer uma democracia e um mercado globais e implementar a ideologia dos direitos humanos a uma escala global. Mas, no decorrer deste processo, sendo os EUA os líderes, o interesse nacional destes não equivale aos valores “universais” da civilização ocidental, em cujo nome agem. Nalguns casos, é preferível operar no seio de uma coligação e, por vezes, até efectuar algumas cedências aos seus parceiros.

O multilateralismo difere do unipolarismo graças à ênfase que dá ao Ocidente em geral, principalmente à sua componente “meritória” (ou seja, a “norma”). Nisto os defensores do multilateralismo convergem com os que advogam a emergência de um mundo apolar. A única diferença entre o multilateralismo e o apolarismo é o facto do multilateralismo ter por base a coordenação interna dos países democráticos do Ocidente enquanto que o apolarismo inclui, entre os seus actores, autoridades não estatais – ONGs, redes, movimentos sociais, etc.

É de realçar que, na prática, a política multilateralista de Obama, inúmeras vezes mencionada por este, e pela Secretária de Estado, Hillary Clinton, não difere muito da era do imperialismo directo e transparente de George W.

Bush, na qual predominavam os neoconservadores. As intervenções militares dos EUA continuaram (Líbia) e as tropas dos EUA permaneceram no Iraque e no Afeganistão ocupados.

O mundo multipolar não assenta numa ordem mundial multilateral, uma vez que se opõe ao universalismo dos valores do Ocidente e não reconhece a legitimidade do “Norte rico” – por si só ou colectivamente – em agir em nome de toda a humanidade e agir como único centro de decisão em todas as questões de maior importância.

A diferenciação do termo “mundo multipolar” da cadeia de termos alternativos ou co-similares realça o campo semântico no qual continuaremos a elaborar a teoria do multipolarismo. Até agora debruçamo-nos apenas sobre o que a ordem mundial multipolar não é, as negações e as diferenciações, por si só, permitem-nos distinguir e contrastar uma série de características constituintes bastante positivas.

Se generalizarmos esta parte positiva, que surge por entre uma série de distinções, ficamos com uma ideia aproximada.

1. O mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que existe de facto na actual situação) dado que insiste na presença de uns quantos centros decisores independentes, a nível global.

2. Estes centros devem encontrar-se suficientemente e financeiramente equipados, sendo materialmente independentes de modo a conseguirem defender a sua soberania no caso de uma invasão directa levada a cabo por um inimigo potencial, como exemplo devemos ter a mais forte potência actual. Esta condição resume-se à capacidade de conseguir resistir à hegemonia estratégico-militar dos Estados Unidos e dos países da OTAN.

3. Esses centros decisores não devem aceitar sine qua non o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais (democracia, liberalismo, livre mercado, parlamentarismo, direitos humanos, individualismo, cosmopolitismo, etc.) e devem ser totalmente independentes da hegemonia espiritual do Ocidente.

4. O mundo multipolar não significa um regresso ao sistema bipolar, dado que hoje não existe qualquer força estratégica ou ideológica capaz de, por si só, resistir à hegemonia espiritual e material do Ocidente moderno e do seu líder – os Estados Unidos. Devem existir mais de dois pólos num mundo multipolar.

5. O mundo multipolar não reconhece a soberania dos actuais Estados-nação, soberania essa que assenta numa base meramente legal e que não se confirma graças à ausência de poderio estratégico e económico e ainda potencial político. No século XXI ser um Estado nacional já não é suficiente para se ser uma entidade soberana. Em tais circunstâncias a verdadeira soberania só pode ser obtida por intermédia de uma combinação, de uma coligação de Estados. O sistema westphaliano, que continua a existir de jure, já não reflecte a realidade do sistema das relações internacionais e precisa de ser revisto.

6. O multipolarismo não se reduz ao apolarismo nem ao multilateralismo, dado que não coloca o centro decisor (o pólo) no seio dum governo mundial, nem na clava dos EUA e dos seus aliados democráticos (o “Ocidente global”) nem ao nível das redes sub-estatais, ONGs e outras instâncias da sociedade civil. O pólo deve localizar-se noutra esfera qualquer.

Estes seis pontos definem a base para uma maior elaboração e resumem as principais características do multipolarismo. Contudo, embora esta descrição nos aproxime significativamente da compreensão da essência do multipolarismo, é ainda insuficiente para ser qualificada como uma teoria. Trata-se de uma predeterminação inicial, com a qual se inicia a teorização, propriamente dita.

terça-feira, 4 de março de 2025

Francisco Solano Lopez e a Guerra do Paraguai - General Bagueira Leal

 


Neste trabalho, não pretendemos fazer um pedido de desculpas ao famoso presidente do Paraguai. Sabemos bem que, nos últimos anos de sua tempestuosa carreira, ele cometeu atos de excessiva crueldade que, embora compreensíveis na difícil situação em que se encontrava, podem não ter uma justificação satisfatória. Queremos apenas narrar algumas coisas, que não são novas, mas que não são amplamente conhecidas, para mostrar que não há razão para que continue a existir a crença, tão difundida em nosso país, segundo a qual o Brasil, ao invadir o Paraguai, lhe prestou um grande serviço, livrando-o de um tirano.

Em primeiro lugar, não é verdade que López era um tirano quando as nações vizinhas se uniram para fazer guerra contra ele. Ele não era um arrivista nem um caudilho, um usurpador do poder: eleito presidente de forma legal em seu país, assumiu o governo pacificamente. Ele era um autocrata porque a Constituição Nacional dava ao presidente um poder e uma responsabilidade indispensáveis para o bom desempenho do cargo supremo. Mas esse autocrata não abusou do amplo poder que lhe foi concedido, pelo menos não no grau necessário para ser considerado um déspota. Não há menção de um único ato de tirania durante esse período que pudesse justificar uma revolta, muito menos uma intervenção estrangeira. Se ele não foi melhor do que todos os presidentes que tivemos, certamente não foi pior do que eles, adotando os critérios que usamos para julgar quem são bons e maus presidentes.


Sua preocupação era grande em elevar o Paraguai no concerto das nações, procurando dotá-lo de todas as melhorias materiais então conhecidas. Os paraguaios se gabam de que seu país foi o primeiro a ter ferrovias e telégrafos no Rio da Prata. Do ponto de vista militar, López não poderia ter alcançado os patamares que a moral e a razão indicam aos estadistas modernos, ou seja, o pacifismo. Ele teve que abraçar os preconceitos que ainda hoje persistem entre os líderes do povo e que se traduzem no aumento, o mais amplo possível, dos armamentos. Diante dessa preocupação desumana, que infelizmente ainda hoje é considerada legítima, López fez o que considerava seu dever. Ele elevou seu exército a tal grau de eficiência que, isolado do mundo e, portanto, privado de recursos, foi capaz de resistir por cinco anos aos exércitos de três nações unidas, em comunicação aberta com toda a Terra. As tropas paraguaias eram admiráveis em disciplina, bravura e abnegação. E sua pequena frota, embora fluvial, era capaz de lutar batalhas com esquadrões inimigos. Canhões e carabinas já estavam sendo fabricados em seus arsenais.


Ele desenvolveu o comércio e a agricultura. Ele chamou a atenção do mundo para seu país por meio de legações que manteve em Londres, Paris e Roma. E — impróprio de um tirano! — ele protegeu as artes e as ciências: quando a guerra foi declarada, uma centena de jovens paraguaios estudavam engenharia, direito e medicina na Europa e nos Estados Unidos, às custas do Estado. Falando sobre o Paraguai naquela época, Juan Silvano Godoy diz: "Seus filhos eram fortes, dedicados ao trabalho, sóbrios, prudentes, respeitosos e corajosos. Suas mulheres eram trabalhadoras, abnegadas, bonitas e tinham amores castos. Os paraguaios viviam em abundância, contentes e felizes, sob o regime de um governo patriarcal, ciumento do crédito, da dignidade e da honra da nação."


Portanto, o Imperador Pedro II, quando liderou a guerra contra o Paraguai, não poderia ter como objetivo a libertação do Paraguai de um tirano, já que não havia tais tiranos lá naquela época. Mas, mesmo que essa guerra tenha sido empreendida em nome da civilização, as resoluções do tratado de aliança, que não trata delas, não se conciliam com essas intenções generosas. O que mais o preocupava era a compensação, as presas que seriam compartilhadas, os territórios a serem conquistados e os limites que seriam impostos aos derrotados. Como tais disposições civilizariam um país e o libertariam de seu tirano?


Mas admitamos que López era um tirano. Suponhamos que eles estivessem certos ao proclamar esse propósito: quem foi que pediu ao Brasil o serviço de libertar o Paraguai de seu tirano? Se, hoje, nas pátrias brasileiras, unidas pelos laços da federação, e onde alguns déspotas se entregam a excessos reprováveis, consideramos ilegítima (e com razão) a intervenção do poder central, mesmo quando envolve a ação de quem se diz oprimido, como justificar a intervenção estrangeira numa nação independente que nada pediu? Suponhamos, porém, que houvesse todos os motivos para intervir: de um lado, um tirano que oprime; de outros, vítimas que clamam. Ainda assim, não foram a Argentina, o Uruguai e muito menos o Brasil que puderam decentemente apresentar-se como cavaleiros andantes; os dois primeiros, porque ainda eram vítimas de líderes que mantinham seus países em constante opressão e desordem; e o Brasil, porque manteve a escravidão. Na verdade, admitindo a cavalheira internacional, a intervenção de López no Brasil seria muito mais justificada para nos livrar de Pedro II, que mantinha uma raça escravizada. E isto é tirania inegável!


Mas a maneira como os aliados libertaram o Paraguai de seu suposto tirano foi infernalmente singular. Eles devastaram o campo, saquearam e destruíram as cidades, exterminaram a população, que ficou reduzida a 140.000 homens e 180.000 mulheres, impuseram um imposto de guerra tão grande que já hoje equivale a uma quantia muitas vezes maior do que aquela que a Alemanha impôs à França em 1870; ignoraram todas as propostas de paz e ocuparam militarmente o território por mais de seis anos. Em resumo, eles libertaram a nação de seu tirano, exercendo a tirania em sua forma mais perfeita.


Enquanto isso, examinando as coisas mais de perto, percebe-se que aconteceu exatamente o oposto: o que os aliados fizeram foi dar ao Paraguai um tirano. López era um presidente moderado antes da guerra e tornou-se sanguinário durante o curso da campanha. Se considerarmos que a essência de uma luta, especialmente cruel como esta, só pode ser uma excitação contínua de instintos egoístas, é lógico concluir que foi a guerra que a transformou assim. "Nem o primeiro nem o segundo ano da luta estão manchados de horrores", diz o autor de quem extraímos esses dados; "mas o duelo interminável, sua desigualdade, a vontade fria e irredutível de aniquilar por parte dos aliados, o juramento de vencer ou morrer, a certeza de não poder vencer, apesar de todo o heroísmo, acendem a fúria, excitam diariamente, rompem as restrições humanas e terminam por precipitar no abismo da loucura assassina o inteligente e culto governante da véspera." Por tudo isso, não é correto afirmar que os aliados libertaram o Paraguai de um tirano; a verdade é exatamente o oposto.


Há, contudo, duas circunstâncias que não devem ser esquecidas quando se deseja fazer uma avaliação desta tirania. Uma delas é que López comandou uma das defesas mais difíceis; um país pequeno, privado de recursos, isolado do mundo, contra três nações muito mais fortes e cujo suprimento de materiais e homens era ilimitado. Não é impossível encontrar nas necessidades impostas por essa defesa extremamente difícil, não diremos uma justificativa completa, mas valiosos atenuantes para seu absurdo. A segunda circunstância é que a Tríplice Aliança não estava em posição moral de estigmatizar os crimes dos outros. Quando queremos falar de atrocidades, é nosso primeiro dever levar em conta as nossas, para evitar que se repitam. "A intensidade do anátema deve ser reduzida quando chega a hora de evocar as aberrações da Tríplice Aliança? Os massacres vingáveis que foram sua lei ignorados? A crônica da campanha das Cordilheiras oferece aspectos terríveis. Fogo de hospitais inimigos, profanações de todo tipo, ninguém recebe quartel. As ignomínias daquele período são propriedade exclusiva das tropas imperiais, que as acabaram com a carnificina das Sete Colinas, onde, como já nos lembramos, mais de duzentos rendidos foram abatidos. Em Aquidabã, o marechal e seus bravos companheiros foram mortos como bestas. Mas o aspecto sombrio não se limitava às fileiras imperiais. A carnificina era a regra geral. Relatando a segunda batalha de Itá Ivaté, o general Garmendia explica: 'Ocorreu então uma pequena escaramuça, na qual só havia homens feridos e outros que imploravam por misericórdia; essa desordem do vencedor foi horrível, e o Coronel Morales tentou a todo custo organizar a marcha desordenada; mas, por outro lado, ouvia-se o grito seco, como o grito de uma coruja, do Coronel Agüero, que gritava: 'Matem, matem!' Isto é o que diz um filho de uma das nações aliadas.


Em vista de tudo o que foi exposto, não é apropriado recorrermos a sofismas ridículos para justificar nossa conduta infeliz. Devemos bater no peito, confessando nosso arrependimento. Mas somos tão teimosos que, em vez daquela atitude humilde de pecadores contritos, ainda comemoramos nossas façanhas. Como nos expomos ao riso! Como dirão aqueles que conhecem o caso e sabem que, se houver glorificações que serão feitas, as maiores corresponderiam exatamente ao lutador que foi derrotado, López! Não só pelo que ele era como soldado (e ele não era menor que qualquer outro), mas também porque naquele conflito ele foi o único líder que lutou por uma causa incontestavelmente justa: a defesa de seu país, pela qual fez o supremo sacrifício.


Um ilustre brasileiro já reconhecia a grandeza da nação paraguaia naquele conflito: o Sr. Joaquim Nabuco. Em uma obra sobre a guerra, ele diz que os Aliados fizeram muito, sem dúvida; mas, tendo em conta os recursos de que dispunham, a sua determinação, tenacidade e sacrifícios, não foram nada comparados ao que fez o Paraguai, e acrescenta que só o esforço deste último pode ser qualificado de grande e sublime.


Abandonemos, portanto, nossa conduta ignóbil. Se há motivos para cerimônias, eles só podem ser de reparação. É horrível zombar dos derrotados. Somente uma celebração de fraternidade e paz com o Paraguai poderia nos tornar maiores. E assim serviríamos melhor à memória do valente General Osório, que disse que "seu maior desgosto era ver sua pátria em guerra e se encontrar em um campo de batalha; que seu dia mais feliz seria o dia em que recebesse a notícia de que o povo — pelo menos os civilizados — estava celebrando sua irmandade queimando seus arsenais." (Fernando Osorio: História do General Osorio, página XXVI). Não insistamos em ser inferiores à nobre nação uruguaia que, há trinta anos, devolveu os troféus e cancelou a dívida.

Médico General Bagueira Leal  

Rio de Janeiro, 7 de junho de 1916

sábado, 1 de março de 2025

Solitude - Mário Ferreira dos Santos

 


O homem superior é um solitário.

Na época atual do homem-massa, em que o gosto se generaliza num sentido de perspectiva comum, de anseios comuns, de opiniões comuns, não é de admirar haver de um mesmo fato uma interpretação igual e um mesmo comentário.

O homem-superior é, naturalmente, um alheiado ao homem-massa; é uma exceção. O homem-massa encerra conceitos comuns, perspectivas comuns, gostos comuns. Isto pode ser um ideal... Para os homens-massa. Nunca será um ideal para o homem que sente a si próprio, que se observa como exceção, cujo ritmo de alma é, naturalmente, diferente da do homem vulgar. Esta exceção é muitas vezes perigosa. Destas exceções saem também os 'perturbadores da ordem'...

Buscar regras diferentes de pensar, intuições mais profundas, vozes que só a solidão nos permite ouvir... guiar-se por anseios que vêm libertos das pressões do meio, é permitido somente aos que se ausentam, aos refratários.

O homem de gosto superior nunca será o mesmo. Suas reações diferem quando em meio dos seus semelhantes.

'São sempre más companhias todas aquelas que não são de nossos iguais'. (Nietzsche).

E isto representa sacrifícios que não se podem calcular.

Dentro da sociedade, os homens vivem ainda a pré-história. A maior parte tem ainda uma mentalidade primitiva, arcaica, e as grandes conquistas, através dos séculos, são apanágio de camadas sociais reduzidíssimas.

As vastas massas ainda raciocinam com os mesmos convencionalismos primitivos. Há homens de todas as culturas no Ocidente: bizantinos, góticos, barrocos, clássicos racionalistas, gregos, romanos, chineses, árabes, e outros ainda mais primitivos. Há mentalidades pré-lógicas, embrionárias. E o homem, em con­junto, o homem bovino, nunca pode ter uma mentalidade acima da subnormal. Só os solitários podem exceder a linha média.

O homem moderno, que tenha consciência de sua atualidade, tem de ser um solitário, e para poder superar em si mesmo as vidas passadas, 'esquecer' vidas já vividas, atingir ciclos mais elevados da consciência, necessita de grandes silêncios, concentrações e meditações profundas.

A solidão é para ele um título de glória.

Irã, Israel, Rússia, USA - Alexander Dugin

  Alguém, talvez, ache que a Terceira Guerra Mundial pode nos passar ao largo. Isso é o “síndrome dos Patricks”. Tudo o que acontece ao redo...