A teoria dos direitos humanos se apresenta como uma teoria válida em todo tempo e lugar, ou seja, como uma teoria universal. A universalidade, reputada como inerente a cada indivíduo entendido como sujeito, representa a medida aplicável a qualquer realidade empírica. Nessa perspectiva, dizer que os direitos são “universais” é outra forma de dizer que são absolutamente verdadeiros. Ao mesmo tempo, sabemos bem que a ideologia dos direitos humanos é um produto do pensamento das Luzes, que a própria ideia de direitos humanos pertence ao horizonte específico da modernidade ocidental. A questão que surge então é saber se a origem estreitamente circunscrita desta ideologia não desmente implicitamente suas pretensões de universalidade. Qualquer declaração de direitos, ao estar fechada historicamente, não provocaria uma tensão ou uma contradição entre a contingência histórica que presidiu sua elaboração e a exigência de universalidade que pretende afirmar?
Está claro que a teoria dos direitos, comparada a todas as culturas humanas, representa mais uma exceção do que uma regra – e constitui, inclusive, uma exceção no interior da cultura europeia, já que surgiu em um momento determinado e relativamente tardio da história da cultura. Se os direitos estão “ali” desde sempre, presentes na própria natureza do homem, podemos nos surpreender com o fato de que somente uma pequena porção da humanidade os tenha notado e que tenha sido necessário tanto tempo para destacar sua existência. Como compreender que o caráter universal dos direitos tenha se tornado “evidente” para apenas uma sociedade particular? E como imaginar que esta sociedade pode proclamar seu caráter universal sem reivindicar, ao mesmo tempo, seu monopólio histórico, ou seja, sem pretender sua superioridade diante daqueles que não o reconheceram?
A própria noção de universalidade também suscita problemas. Quando se fala de universalidade de direitos, de que tipo de universalidade se pretende falar? De uma universalidade de ordem geográfica, filosófica ou moral? A universalidade dos direitos confronta, além disso, com esta questão levantada por Raimundo Panikkar: “tem algum sentido se perguntar se reúnem as condições de universalidade, quando a própria questão da universalidade está longe de ser uma questão universal?”77.
Dizer que todos os homens são titulares dos mesmos direitos é uma coisa, dizer que esses direitos devem ser reconhecidos em todos os lados sob a forma pela qual são produzidos pela ideologia dos direitos é outra [coisa] muito diferente. Isto levanta, de fato, a questão de saber quem tem a autoridade para impor este ponto de vista, qual é a natureza dessa autoridade e o que garante o bom fundamento de seu discurso. Em outros termos: quem decide que deve ser assim e não de outra maneira? Todo universalismo tende a ignorar ou suprimir as diferenças. Em sua formulação canônica, a teoria dos direitos parece estar pouco disposta a reconhecer a diversidade cultural, e isso acontece por duas razões: por um lado, seu enraizado individualismo e o caráter altamente abstrato do sujeito que proclama seus direitos; por outro lado, os laços históricos privilegiados com a cultura ocidental, ou ao menos com uma das tradições constitutivas desta cultura. Isto foi perfeitamente demonstrado pela revolução francesa quando afirmou a necessidade de “rechaçar os judeus como nação, mas aceitá-los como indivíduos” (Clermont-Tonnerre), o que vinculava a emancipação dos judeus à destituição de seus laços comunitários. Desde então, o discurso dos direitos humanos não deixou de ser confrontado com a diversidade humana tal como se expressa na pluralidade dos sistemas políticos, das tradições religiosas e dos valores culturais. Este discurso está orientado a dissolvê-los ou poder diluí-los, com o risco de se dissolver a si mesmo? É compatível com as diferenças ou é capaz apenas de fazê-las desaparecer? Todas essas questões, que deram lugar a uma considerável literatura78, desembocam, no fim das contas, em uma alternativa simples: se se sustenta que os conceitos constitutivos da ideologia dos direitos humanos são, apesar de sua origem ocidental, conceitos verdadeiramente universais, é necessário que isso seja provado.
Se se renuncia à sua universalidade, arruína-se todo o sistema: de fato, se a noção de direitos é puramente ocidental, sua universalização em escala planetária representa, com plena evidência, uma imposição de fora, uma forma sub-reptícia de converter e dominar, ou seja, [representa] uma continuação da síndrome colonial.
Uma primeira dificuldade aparece já ao nível do vocabulário. Até a Idade Média, não se encontra, em nenhuma língua europeia – tampouco em árabe, hebreu, mandarim ou japonês – um termo que designe algum direito como atributo subjetivo da pessoa, distinto enquanto tal da matéria jurídica (o direito). Isso nos leva a dizer que, até um período relativamente tardio, não existia nenhuma palavra para designar os direitos como algo pertencente aos homens somente em virtude de sua humanidade. Só este fato – avalia Alasdair MacIntyre – já nos faz duvidar de sua realidade79.
A própria noção de direito é tudo menos universal. Para expressá-la, a língua hindu possui apenas equivalentes aproximativos, como yukta e ucita (apropriado), nyayata (justo) e inclusive dharma (obrigação). Em mandarim, “direito” se traduz mediante a justaposição de dois ideogramas, chuan li, que designam poder e interesse. Em árabe, a palavra haqq, “direito”, significa, em princípio, verdade80.
A teoria dos direitos humanos postula, aliás, a existência de uma natureza humana universal, independente de épocas e lugares, que seria suscetível de se conhecer por meio da razão. Esta afirmação, que não é própria deles (e que em si não tem nada de questionável), dá uma interpretação muito particular que implica uma tríplice separação: entre o homem e os demais seres vivos (o homem é o único titular dos direitos naturais); entre o homem e a sociedade (o ser humano é, fundamentalmente, o indivíduo; o fato social não se torna pertinente para conhecer sua natureza); e entre o homem e o conjunto do cosmos (a natureza humana não deve nada à ordem geral das coisas). No entanto, esta tríplice cisão não existe na imensa maioria das culturas não-ocidentais, compreendidas, evidentemente, naquelas que reconhecem a existência de uma natureza humana.
O problema se choca em particular com o individualismo. Na maioria das culturas – como, aliás, deve-se recordar, na cultura ocidental das origens – o indivíduo em si simplesmente não é representável. Jamais é concebido como uma mônada, separado do que o une não somente aos seus semelhantes, mas à comunidade dos seres vivos e ao universo inteiro. As noções de ordem, de justiça e de harmonia não se elaboram a partir dele, nem a partir do lugar único que seria o do homem no mundo, mas a partir do grupo, da tradição, dos laços sociais ou da totalidade do real. Falar de liberdade do indivíduo em si não tem, então, sentido algum em culturas que se mantêm fundamentalmente holistas e que se recusam a conceber o ser humano como um átomo autossuficiente. Nestas culturas, a noção de direitos subjetivos está ausente, enquanto é onipresente a de obrigação mútua e a da reciprocidade. O indivíduo não tem que fazer valer seus direitos, mas trabalhar para encontrar no mundo e, em princípio, na sociedade a qual ele pertence, as condições mais propícias para a realização de sua natureza e a excelência do seu ser.
O pensamento asiático, por exemplo, se expressa, sobretudo, mediante a linguagem dos deveres. A noção moral que serve de base ao pensamento chinês é a dos deveres para com os demais, não a dos direitos que poderiam se opor a eles [, os deveres,], pois “o mundo dos deveres é logicamente anterior ao mundo dos direitos”81. Na tradição confuciana, que valoriza a harmonia dos seres entre si e com a natureza, o homem não poderia possuir direitos superiores aos da comunidade à qual pertence. Os homens se vinculam entre si pela reciprocidade de seus deveres e pela obrigação mútua.
Além disso, o mundo dos deveres é mais extenso do que o dos direitos. Enquanto a cada direito corresponde teoricamente um dever, não é verdade que a cada obrigação corresponde um direito: podemos ter obrigações para com alguns homens de quem não temos nada a esperar, assim como também para com a natureza e os animais, que não nos devem nada82.
Na índia, o hinduísmo representa o universo como um espaço onde os seres atravessam ciclos multiformes de existência. No taoísmo, o Tao do mundo é visto como um antecedente universal que governa a marcha dos seres e das coisas. Na África negra, o vínculo social associa tanto os vivos quanto os mortos. No Oriente próximo, as noções de respeito e de honra determinam as obrigações no interior da família extensa e do clã83. Todos esses dados são pouco conciliáveis com a teoria dos direitos. “Os direitos humanos são um valor ocidental – escreve Sophia Mappa – que não é de modo algum compartilhado com outras sociedades do globo, apesar dos discursos miméticos”84.
Estabelecer que o que vem primeiro não é o indivíduo mas o grupo não significa absolutamente que o indivíduo esteja “limitado” ao grupo, mas, melhor dito, que adquire sua singularidade em respeito a uma relação social que também é constitutiva de seu ser; isso tampouco quer dizer que não exista em todo lugar um desejo de escapar do despotismo, da coerção e dos maus-tratos. Entre o indivíduo e o grupo pode surgir tensões; isso é algo universal. O que realmente não é universal é conceber a crença que estabelece que o melhor meio para preservar a liberdade é conceber, de maneira abstrata, um indivíduo desprovido de todas suas características concretas, desligado de tudo aquilo a que pertence natural e culturalmente. Existem conflitos em todas as culturas, porém na maioria delas a visão do mundo que prevalece não é uma visão conflitiva (o indivíduo contra o grupo), mas uma visão “cósmica”, dirigida para a ordem e harmonia natural das coisas. Cada indivíduo tem um papel a ser desempenhado no conjunto em que se insere, e o papel do poder político é assegurar, da melhor maneira possível, essa coexistência e harmonia, garantia de continuidade. Devido ao fato de que o poder é universal, ainda que as formas que ele assume não o sejam, o desejo de liberdade também é universal, mesmo que as formas de responder a esse desejo possam variar consideravelmente.
O problema se torna particularmente agudo quando as práticas sociais ou culturais denunciadas em nome dos direitos humanos não são práticas impostas, mas práticas habituais que gozam claramente da aprovação massiva no interior das populações interessadas (e isso não quer dizer que jamais sejam criticadas). Como se poderia obrigá-los a [adentrar] uma doutrina fundamentada no fato de que os indivíduos dispõem livremente de si mesmos? Se os homens devem ser deixados em liberdade para fazer o que quiserem conquanto o uso de sua liberdade não se intrometa na dos demais, por que povos cujos costumes nos parecem ofensivos ou condenáveis não poderiam ser deixados em liberdade para praticá-los, uma vez que não buscam impô-los aos outros?
O exemplo clássico é o da circuncisão feminina, praticada ancestralmente e até hoje em numerosos países da África negra (assim como em alguns países muçulmanos).
Trata-se, muito claramente, de uma prática anômala, mas que se torna difícil de extrair do contexto cultural e social, onde é considerado, pelo contrário, algo moralmente bom e socialmente necessário: uma mulher sem esta mutilação não poderia se casar e nem poderia ter filhos; por isso, as mulheres que foram mutiladas são as primeiras a querer que o corte seja também praticado em suas filhas. A questão reside em saber em nome de quê se poderia impedir a continuação de um costume que não é imposto a ninguém. A única resposta razoável seria que se pode apenas convidar os interessados a refletir sobre o seu pertencimento, ou seja, encorajar a crítica interna em torno desta prática. É a eles e elas a quem concerne o problema e a quem, primeiramente, deveria se submeter85.
Para citar outro exemplo, quando em um país muçulmano uma mulher é apedrejada por adultério – algo que indigna os defensores dos direitos humanos – poder-se-ia perguntar: qual é o sentido de tal indignação? No modo de executá-la (apedrejamento)? No fato de que a adúltera é condenada à morte (ou que simplesmente seja condenável)? Ou na própria pena de morte? O primeiro motivo parece, sobretudo, de ordem emotiva86; o segundo, pelo menos, pode ser discutido (qualquer que seja o sentimento que tenhamos a respeito desta questão, em nome de quem se poderia impedir que os membros de uma cultura determinada pensem que o adultério é uma falta que merece uma sanção e que qualifiquem como quiserem a gravidade de uma tal sanção?). Em relação ao terceiro, torna todos os países que mantêm a pena de morte, começando pelos Estados Unidos, violadores dos direitos humanos.
Querer atribuir um valor universal aos direitos humanos tal como estão formulados – escreve Raimundo Panikkar – é postular que a maioria dos povos do mundo estão comprometidos, do mesmo modo que as nações ocidentais, com um processo de transição de uma Gemeinschaft mais ou menos mítica […] a uma “modernidade” organizada de forma “racional” e “contratual”, igualada àquela que conhece o mundo ocidental industrializado. Este é um postulado discutível.87 Uma vez que proclamar o conceito de direitos humanos […] bem poderia se revelar como um cavalo de troia que, clandestinamente, se introduz no coração de outras civilizações com a finalidade de fazer aceitar os modos de existência, de pensamento e de sentir em virtude dos quais os direitos humanos constituem a solução que se impõe em caso de conflito.88 Aceitar a diversidade cultural exige um pleno reconhecimento do Outro. Mas como reconhecer o Outro se seus valores e suas práticas se opõem àquelas que se quer propor? Os defensores da ideologia dos direitos são, em geral, partidários do “pluralismo”. Mas que compatibilidade há entre os direitos humanos e a pluralidade dos sistemas culturais e das crenças religiosas? Se o respeito aos direitos individuais passa pelo não-respeito às culturas e aos povos, deve-se concluir que todos os homens são iguais, mas que as culturas que esses seres iguais criaram não são?
A imposição dos direitos humanos representa categoricamente uma aculturação, cuja aplicação corre o risco de significar a dissolução ou a erradicação de identidades coletivas que também desempenham um papel na constituição das identidades individuais. A ideia clássica que assegura que os direitos protejam os indivíduos dos grupos aos quais pertencem e que constituem um recurso a respeito das práticas, das leis ou dos costumes que caracterizam tais grupos, confirma seu caráter duvidoso. Aqueles que denunciam esta ou aquela “violação dos direitos humanos” medem sempre com exatidão em que ponto a prática que criticam pode ser inerente à cultura em cujo interior se observa? Aqueles que se queixam da violação de seus direitos estariam dispostos, por sua vez, a respeitar esses direitos ao custo da destruição da sua própria cultura? Não desejariam, pelo contrário, que seus direitos fossem reconhecidos com base naquilo que faz da sua cultura especial? Os indivíduos – escreve Paul Piccone – só poderão estar protegidos [pelos direitos humanos] quando a essência desses direitos tiver sido incorporada ao sistema jurídico particular de sua comunidade e todo o mundo realmente acreditar nela.89 A observação é justa. Por definição, os direitos humanos não podem ser invocados a não ser onde já tenham sido reconhecidos, nas culturas e nos países que já tenham interiorizado os princípios – ou seja, ali onde, teoricamente, não deveria ter necessidade de reivindicá-los. Então, se os direitos humanos não podem ter eficácia além do lugar em que os princípios que os fundamentam já tenham sido interiorizados, a distorção das culturas provocada por sua brutal importação vai diretamente contra o objetivo buscado.
O paradoxo dos direitos humanos – acrescenta Piccone – consiste em que seu desenvolvimento implica na erosão e na destruição das condições (tradições e costumes) sem as quais sua aplicação se tornaria estritamente impossível.90 * É com o fim de conciliar a ideologia dos direitos com a diversidade cultural que se elaborou a noção de direito dos povos. Esta nova categoria de direitos foi teorizada depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo no marco das reivindicações nacionalistas que deveriam conduzir à descolonização, mas também sob a influência dos trabalhos de etnólogos como Claude Levi-Strauss que, como reação aos defensores do evolucionismo social (Lewis Morgan), denunciava os despropósitos da aculturação e colocava ênfase nas particularidades culturais ou na necessidade de reconhecer direitos particulares às minorias étnicas. Mais recentemente, a renovação das afirmações identitárias de todo tipo – reação compensatória diante da recusa das identidades nacionais e da crescente esclerose dos Estados-nação – atualizou o assunto.
Para Lelio Basso, grande defensor dos direitos dos povos, os verdadeiros “sujeitos da história são os povos, que também são os sujeitos do direito”91.
Uma Declaração Universal dos Direitos dos Povos foi adotada na Argélia em 4 de julho de 1976 (data do bicentenário da Declaração dos Direitos nos EUA). Ali se estipula que “todo povo tem direito ao respeito a sua identidade nacional e cultural” (artigo 2º), que todo povo “determina seu estatuto político com plena liberdade” (artigo 5º), que possui um “direito exclusivo sobre suas riquezas e recursos naturais” (artigo 8º), que tem o “direito de dar a si mesmo o sistema econômico e social de sua eleição” (artigo 11º), o “direito de falar sua língua, de preservar e desenvolver sua cultura” (artigo 13º), assim como “o direito de não ser outorgado a uma cultura que lhe seja alheia”92. A simples enumeração destes direitos, que em sua maioria são letra morta, basta para demonstrar até que ponto sua harmonização com a teoria clássica dos direitos é problemática. O direito de manter uma identidade coletiva, por exemplo, pode competir com alguns direitos individuais. O direito à segurança coletiva também pode consistir em severas limitações às liberdades individuais. De modo geral – escreve Norbert Rouland – “é certo que a noção dos direitos humanos tem por resultado servir de obstáculo ao reconhecimento dos direitos coletivos dos grupos étnicos”93. E quanto ao direito dos povos à autodeterminação, que serviu de base para a descolonização, contradiz categoricamente o direito de intervenção por uma inclinação “humanitária”94.
Os otimistas pensam que os direitos individuais e os direitos coletivos são espontaneamente harmônicos porque são complementares; as percepções difeririam de qualquer maneira quanto à hierarquia que se impõe entre os primeiros e os segundos. Assim, Edmund Jouve assegura que “os direitos humanos e os direitos dos povos não poderiam se contradizer”95. Outros, mais numerosos, salientam as inegáveis contradições, mas esboçam conclusões divergentes.
Muitos chegaram a pensar que a noção de direito dos povos é só uma abstração destinada a justificar a substituição de uma opressão por outra, e que somente contam os direitos dos indivíduos – observa Leo Matarazzo. Outros, pelo contrário, pensam que os direitos humanos não são invocados senão como subterfúgio ideológico para justificar atos atentatórios aos direitos dos povos.96 Encontramos a mesma diversidade de opiniões a propósito do caráter “universal” ou, pelo contrário, estritamente ocidental dos direitos humanos. Seguindo Alain Renault, que afirma que “a referência aos valores universais não implica em absoluto o desprezo ao particular”97, a maioria dos partidários da ideologia dos direitos continua sustentando com força sua universalidade.
Os direitos humanos – declara John Rawls – não são consequência de uma filosofia particular nem de uma forma, entre outras, de ver o mundo. Não estão ligados só à tradição cultural do Ocidente, embora no interior desta tenham sido formuladas pela primeira vez. Derivam simplesmente da definição de justiça.
Aqui, o postulado implícito é evidentemente que só há uma definição possível de justiça. “Ainda que seja certo que os valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem derivem da tradição das Luzes – acrescenta Willian Schultz – virtualmente todos os países do mundo os aceitaram”99. Como é possível que muitas vezes se tenha que recorrer às armas para os impôr? Com uma tal perspectiva seria, de certa forma, por azar que o Ocidente tenha chegado antes que os demais a esse “estágio” no qual se tornou possível formular explicitamente uma aspiração atual [que] em todos os lugares [tenha existido] de maneira implícita. Essa primazia histórica não lhe conferiria qualquer superioridade moral particular. Os ocidentais estariam somente “adiantados”, enquanto as outras culturas estariam “atrasadas”. Trata-se do esquema básico da ideologia do progresso. A discussão em torno da universalidade dos direitos humanos lembra muitas vezes os diálogos “ecumênicos” nos quais erroneamente se assume que todas as crenças religiosas remetem, sob diferentes formas, a “verdades” comuns. O raciocínio para demonstrar que os direitos são universais é quase sempre o mesmo, consiste em supor que em todo o mundo existe um desejo de bem-estar e liberdade, de onde se segue que o argumento para legitimar o discurso dos direitos responderia a essa demanda100. Contudo, esta conclusão está totalmente errada. Ninguém jamais negou que todos os homens tenham algumas aspirações em comum, nem que se possa estabelecer um consenso para considerar algumas coisas como intrinsecamente boas ou intrinsecamente más. Em todo o mundo a pessoa sempre prefere estar saudável a estar enferma, ser livre a estar aprisionada, em todos os lados detesta-se ser golpeado, torturado, arbitrariamente preso, massacrado etc.
Mas de que alguns bens sejam humanos não se segue que o discurso dos direitos seja válido e menos ainda que seja universal. Em outras palavras, não é a universalidade do desejo de escapar da coerção a que se trata de demonstrar, mas antes a universalidade da linguagem que se quer utilizar para responder a um tal desejo. Não se pode confundir os dois planos. E jamais se abordou a segunda demonstração.
A forma com a qual se combinam os diferentes valores entre si, aliás, raramente transcende a pluralidade das culturas pela simples razão de que cada um destes valores recebe uma distinta coloração no interior de cada cultura. Dizer – como muitas vezes assinalou Charles Taylor – que um valor é bom é dizer que a cultura na qual tal valor é valorizado merece ser vista, ela mesma, como boa. Quanto à razão, que está longe de ser axiologicamente neutra, qualquer tentativa de associá-la com o valor que seja, assim que seja decretada como “universal”, inexoravelmente a vincula com a cultura particular na qual tal valor é honrado.
À pergunta “o conceito dos direitos humanos é um conceito universal?” Raimund Panikkar responde com clareza:
A resposta é simplesmente não. E isto devido a três razões: a) nenhum conceito é universal por si mesmo.
Cada conceito é válido, em primeiro lugar, ali onde foi concebido. Se queremos estender sua validez para além dos limites de seu próprio contexto, ter-se-ia que justificar tal extrapolação […] Além disso, todo conceito tende à univocidade. Aceitar a possibilidade de conceitos universais implicaria uma concepção estritamente racionalista da verdade. Mas, mesmo que esta posição correspondesse à verdade teórica, a existência de conceitos universais não corresponderia, em razão da pluralidade de universos discursivos que apresenta de fato o gênero humano […] b) no interior do vasto campo da própria cultura ocidental, os postulados que servem para situar nossa problemática não são universalmente admitidos. c) ainda que se adote, em alguma medida, uma atitude de espírito transcultural, o problema aparecerá como exclusivamente ocidental, que é o que está em questão. A maioria dos postulados, assim como outras pressuposições conexas enumeradas anteriormente, não estão presentes em outras culturas.101 Esta é a razão pela qual alguns autores se resignam a admitir que os direitos humanos são uma “construção ocidental de aplicabilidade limitada”102, dificilmente aplicável, em qualquer caso, às culturas cuja tradição é alheia ao individualismo liberal. O próprio Raymond Aron tinha compreendido assim:
Qualquer declaração de direitos parece, finalmente, uma expressão idealizada de uma ordem política ou social que determinada classe ou civilização se esforça por realizar […]. Isso também explica o equívoco da Declaração Universal dos Direitos de 1948, que toma da civilização ocidental a mesma prática de elaborar uma declaração de direitos, enquanto outras civilizações ignoram não as normas coletivas ou os direitos individuais, mas sua expressão teórica – de pretensão universal – destes ou daqueles.103 A crítica ao universalismo dos direitos em nome do pluralismo cultural não é nova. Herder e Savigny, na Alemanha, assim como Henry Maine na Inglaterra, demonstraram que a matéria jurídica não poderia ser compreendida sem que se levasse em conta as variáveis culturais. Uma crítica análoga encontramos em Hannah Arendt, quando escreve que “o paradoxo dos direitos abstratos, ao recusar os direitos de uma humanidade sem raiz, corre o risco de privar de identidade aqueles que são, precisamente, vítimas do desenraizamento imposto pelos conflitos modernos”.
Na mesma linha, Alasdair MacIntyre lança três objeções à ideologia dos direitos humanos. A primeira é que a noção de direito, tal como assume esta ideologia, não se encontra em nenhum lugar, o que demonstra que não é intrinsecamente necessária na vida social. A segunda é que o discurso dos direitos, na medida em que pretende proclamar direitos derivados de uma natureza humana atemporal, está estritamente circunscrito a um período histórico determinado, o que torna pouco crível a universalidade de seu propósito. A terceira é que qualquer tentativa de justificar a crença em tais direitos está marcada pelo fracasso. Ao salientar que não se pode ter e desfrutar desses direitos a não ser em um tipo de sociedade que possua certas regras estabelecidas, MacIntyre escreve: “estas regras não aparecem a não ser em períodos históricos particulares e em circunstâncias sociais peculiares.
Não são, em absoluto, as características universais da condição humana”104. E conclui que esses direitos, assim como bruxas e unicórnios, são apenas ficção105.
* A teoria dos direitos humanos, enquanto se apresenta incisivamente como uma verdade universal, representa, em certos aspectos, uma reação contra o relativismo. Aqui há um certo paradoxo, pois esta teoria emana do mesmo liberalismo doutrinal que, historicamente, também legitimou o relativismo ao proclamar o igual direito que cada indivíduo tem de perseguir os fins que imperiosamente tenha escolhido. (A contradição aparece claramente entre aqueles que elogiam o “multiculturalismo” a partir de uma posição estritamente relativista e ao mesmo tempo denunciam tal ou qual tradição como um “atentado contra os direitos humanos”). Mas se a ideologia dos direitos humanos escapasse do relativismo, corre, ao contrário, o risco de cair no etnocentrismo. Isto é o que Hubert Védrine, antigo ministro de Assuntos Exteriores, confirma quando dizia que a vulgata dos direitos humanos chegou a considerar que “os valores ocidentais são, em bloco e sem discussão nem matiz possível, valores universais e invariáveis, e qualquer questionamento a este respeito, qualquer pragmatismo, é um sacrilégio”106.
Dar por certo que sem um reconhecimento explícito dos direitos humanos a vida seria caótica e careceria de sentido – escreve, por sua vez, Raimund Panikkar – compartilha de uma mentalidade similar a sustentar que, sem a crença em um Deus único tal como entende a tradição abraâmica, a vida humana dissolver-se-ia na total anarquia. Bastaria extrapolar um pouco mais nesta direção para concluir que os ateus, os budistas e os animistas, por exemplo, deveriam se considerar representantes de aberrações humanas.
É a mesma tendência: ou direitos humanos ou caos.107 Semelhante deslize é facilmente evitável. A partir do momento em que uma doutrina ou uma cultura acreditem ser portadoras de uma mensagem “universal”, manifesta-se uma inevitável propensão a travestir como tais (como universais, N.T.) seus valores particulares. Desqualifica, assim, os valores dos outros, os quais concebe como enganosos, irracionais, imperfeitos ou simplesmente superados. Com a melhor das boas consciências, pois está convencida de falar em nome da verdade, professa a intolerância. “Uma doutrina universalista inevitavelmente evolui para formas equivalentes ao partido único”, dizia Lévi-Strauss108.
Em uma época em que a diversidade cultural e humana é a última coisa que a ideologia econômica e de mercado que domina o planeta nutre, a ideologia dos direitos retoma fraudulentamente, assim, os antigos discursos de dominação e aculturação. Ao acompanhar a expansão planetária do mercado, proporciona-lhe a roupagem “humanitária” que lhe faz falta. Já não é em nome da “verdadeira fé”, da “civilização”, do “progresso”, ou até mesmo do “pesado fardo do homem branco”109, que o Ocidente crê estar fundamentado para reger as práticas sociais e culturais existentes no mundo, mas em nome da moral encarnada pelo direito. A afirmação da universalidade dos direitos humanos, nesse sentido, não representa senão a convicção de que os valores particulares, os da civilização ocidental moderna, são os valores superiores que devem se impor em todas as partes. O discurso dos direitos permite ao Ocidente, mais uma vez, se elevar como juiz do gênero humano.
Ao identificar a defesa dos direitos humanos com a defesa dos valores ocidentais – escrevem René Gallisot e Michel Trebitsch – , uma nova ideologia, mais insidiosa e sutil, uma ideologia soft, permite substituir o maniqueísmo Leste-Oeste nascido da Guerra Fria por um maniqueísmo Norte-Sul, com o qual a liberdade ocidental espera refazer sua virgindade.110 O modelo ocidental – observa, por sua vez, Sophia Mappa – […] deve se impor à humanidade como se estivesse dotado de uma objetividade natural que lhe assegura a superioridade sobre os outros. Segundo esta mesma ideia, os diversos sistemas sociais do globo seriam variantes do sistema ocidental cujos traços específicos deveriam desaparecer diante do avanço irresistível deste último à escala planetária […]. Para que o modelo ocidental conquiste o planeta seria necessário [então] que as outras sociedades abandonassem conscientemente suas representações de mundo, seus valores, suas práticas sociais, suas instituições e seus símbolos culturais profundamente enraizados.111 Poderia acontecer de outra maneira? Podemos duvidar seriamente. Como escreve François Flahault:
Se o mundo ocidental quiser convencer o planeta sobre o bom fundamento dos direitos humanos tal como os concebeu, deve assumir os pressupostos antropológicos e teológicos que sustentam suas formulações (em particular, o uso específico do termo direitos na expressão “direitos humanos”). Se, pelo contrário, quiser evitar se apoiar em tais pressupostos, então deve reconhecer que as formulações que deu para tais direitos saem de sua própria tradição e tem valor universal só na medida em que apela a um sentimento moral compartilhado por todos os homens de boa vontade.112 De modo geral – dizia Raymond Aron – poder-se-ia estabelecer o seguinte dilema: ou bem os direitos alcançam uma espécie de universalidade porque toleram, graças à sua forma conceitual vaga, qualquer instituição, ou bem porque se preocupam com qualquer precisão e perdem sua universalidade.113 E conclui: “os direitos chamados universais não merecem esta qualificação a não ser sob a condição de serem formulados em uma linguagem a tal ponto vaga que perdem qualquer conteúdo definido”114.
François de Smet resume o mesmo dilema nos seguintes termos:
Ou nos resolvemos por um direito internacional débil, desprovido de substância, flexível à vontade – que respeita as concepções de todas as culturas humanas – e ineficaz; ou bem assumimos nossa posição de que nossa cultura – a dos direitos individuais, a do valor do indivíduo diante da coletividade – é superior às demais, cuja superioridade somente pode se afirmar arbitrariamente se julgarmos este predomínio moral mediante nossas próprias premissas.115 Refutar a universalidade da teoria dos direitos não significa, com efeito, que se tenha de aprovar qualquer prática política, cultural ou social, apenas porque existe. Reconhecer a livre capacidade dos povos e das culturas de se dar por si e a si mesmos as leis que desejam adotar, ou a conservar os costumes e as práticas que são suas, não significa automaticamente sua aprovação; permanece a liberdade de juízo, e é somente a conclusão que se extrai que pode variar. O mau uso que um indivíduo ou um grupo faz de sua liberdade conduz a condenar sua utilização, não a condenar tal liberdade. Não se trata de modo algum de adotar uma posição relativista – que é uma posição insustentável – mas uma posição pluralista. Existe uma pluralidade de culturas, e as culturas respondem de maneiras diferentes às aspirações que expressam. Algumas destas respostas podem nos parecer bem questionáveis. É perfeitamente normal condená-las – e rechaçarmos nós mesmos sua adoção. Faltaria ainda admitir também que uma sociedade não pode evoluir em um sentido que nós julgamos preferível só a partir de realidades culturais e de práticas sociais que não são suas. Essas respostas podem ser igualmente contraditórias. Deve-se reconhecer, então, que não existe uma instância relevante, um ponto de vista superior que abarque e permita sanar tais contradições.
Raimund Panikkar, por outro lado, demonstrou muito bem que se pode descobrir, sem dificuldade e em todas as culturas, os “equivalentes homomorfos” do conceito de direitos humanos, mas que tais equivalentes – na Índia a noção de dharma, na China a noção de li (rito) – não são nem “traduções” nem sinônimos, nem sequer são contrapartidas, mas apenas as formas próprias a cada cultura de responder a uma necessidade equivalente. Quando Joseph de Maistre, em uma passagem que se pode citar, diz que durante sua vida encontrou com homens de todos os tipos, mas que jamais viu o homem em si, ele não nega a existência de uma natureza humana. Ele apenas afirma que não existe uma instância em que tal natureza se deixa apreender em seu estado puro, independentemente de seu contexto particular: o pertencimento à humanidade está sempre mediado por uma cultura ou uma coletividade. Seria errado concluir que a natureza humana não existe: que a realidade objetiva é indissociável de qualquer contexto ou de qualquer interpretação não quer dizer que se reduz a este contexto; isso não significa outra coisa senão essa única interpretação.
O justo por natureza […] existe – salienta Eric Weil – mas é diferente em todos os lugares. Distinto por qualquer lugar, não é o mesmo em uma comunidade tradicional e em uma organização política de tipo tirânico ou no Estado de uma sociedade moderna.
Concluir que tal natureza só existe em nós seria absurdo, tão absurdo quanto seria afirmar que o problema do justo por natureza é sugerido ou tem sido ou devesse ser sugerido em todas as partes.116 Em Fragile Humanité117, Myriam Revault d'Allones propôs uma interessante fenomenologia do fato humano, não no sentido de uma construção dos demais pela esfera da subjetividade, mas a partir de uma perspectiva relacional que coloca antes de tudo o “sentido humano” como uma capacidade de intercambiar experiências. A humanidade – diz ela – não é uma categoria funcional, mas uma “disposição a habitar e a compartilhar o mundo”118. Podemos chegar à conclusão de que a humanidade não aparece como um dado unitário, mas sobre um fundo comum que compartilha.