sábado, 18 de janeiro de 2025

O Simbolismo da Alquimia Chinesa - Mircea Eliade

 


Tanto na China quanto em outros lugares, a alquimia é definida por meio de uma dupla crença: 1) na transmutação dos metais em ouro; 2) no valor ''soteriológico'' das operações efetuadas com o objetivo de alcançar esse resultado. As referências precisas a essas duas crenças são atestadas na China desde o século IV a.C. Admite-se em geral que Tsu Yen, um contemporâneo de Mêncio, é o ''fundador'' da alquimia. No século II a.C., a relação entre o preparo do ouro alquímico e a obtenção da longevidade-imortalidade é claramente reconhecida por Liu An e por outros autores. 

A alquimia chinesa constitui-se, como disciplina autônoma, utilizando: 1)os princípios cosmológicos tradicionais; 2) os mitos relacionados com o elixir da imortalidade e os santos imortais; 3) as técnicas que visam, ao mesmo tempo, ao prolongamento da vida, à beatitude e à espontaneidade espiritual. Estes três elementos -- princípios, mitos e técnicas -- pertenciam ao legado cultural da proto-história, e seria um erro acreditar que a data dos primeiros documentos que os atestam nos informem também a sua idade. [...] A busca do elixir estava, portanto, associada à procura das ilhas remotas e misteriosas onde viviam os ''imortais'': encontrar os ''imortais'' era transcender a condição humana e participar de uma existência atemporal e beatífica. 

A pesquisa do ouro envolvia também uma investigação de natureza espiritual. O ouro tinha um caráter imperial: achava-se no ''centro da Terra'' e tinha relações místicas com o chüe (rosalgar ou sulfeto), o mercúrio amarelo e a vida futura (as ''fontes amarelas''). É essa a maneira como é apresentado num texto de ~122 a.C., o Huai-nan-tzu, onde encontramos atestada também a crença numa metamorfose precipitada dos metais. Como o seu correspondente ocidental, o alquimista chinês auxilia a obra da natureza apressando o ritmo do tempo. [...] 

A homologação tradicional entre o macrocosmo e o microcosmo relacionava os cinco elementos cosmológicos (água, fogo, madeira, ar, terra) aos órgãos do corpo humano: o coração, com a essência do fogo; o fígado, com a essência da madeira; os pulmões, com a essência do ar; os rins, com a essência da água; o estômago, com a essência da terra. O microcosmo, que é o corpo humano, achava-se, por sua vez, interpretado em termos alquímicos: ''o fogo do coração é vermelho como o cinábrio, e a água dos rins é negra como o chumbo'' etc. Por conseguinte, o homem possui, no seu próprio corpo, todos os elementos que constituem o cosmo e todas as forças vitais que asseguram a renovação periódica. Trata-se apenas de reforçar certas essências. Daí a importância do cinábrio, menos pela cor vermelha (cor do sangue, princípio vital) que pelo fato de que, exposto ao fogo, produz o mercúrio. Ele encerra, portanto, o mistério da regeneração pela morte (pois a combustão simboliza a morte). Disso resulta que o cinábrio pode assegurar a regeneração perpétua do corpo humano e, consequentemente, a imortalidade. [...] 

No entanto, o cinábrio também pode ser produzido no interior do corpo humano, através sobretudo da destilação do esperma nos campos do cinábrio. Esses campos de cinábrio, região secreta do cérebro munida de um ''quarto semelhante a uma gruta'', são também conhecidos como K'uen-luen. Ora, K'uen-luen é uma montanha fabulosa do mar do Ocidente, morada dos imortais. ''Para aí penetrar por meio da meditação mística, entra-se num estado 'caótica' (huen) semelhante ao estado primordial, paradisíaco, 'inconsciente' do mundo incriado''. 

Convém não esquecermos sobretudo de dois elementos: 1) a identificação da montanha mítica K'uen-luen com as regiões secretas do cérebro e do ventre; 2) o papel atribuído ao estado ''caótico'', que, uma vez alcançado pela meditação, permite o ingresso nos campos de cinábrio, tornando assim possível a preparação alquímica do embrião da imortalidade. A montanha do mar do Ocidente, morada dos imortais, é uma imagem tradicional e muito antiga do ''mundo em ponto pequeno'', de um Universo em miniatura.

A montanha K'uen-luen tem dois andares, formados por um cone reto sobre o qual se ergue um cone invertido. Em outras palavras, tem a forma de uma cabaça, exatamente como o forno do alquimista e a região secreta do cérebro. Quanto ao estado ''caótico'' obtido pela meditação e indispensável à operação alquímica, é comparável à matéria prima, a massa confusa da alquimia ocidental. A matéria-prima não deve ser entendida somente com uma estrutura primordial da substância, mas ainda como uma experiência interior do alquimista. A redução da matéria à sua condição primeira de absoluta indiferenciação corresponde, no plano da experiência interior, à regressão ao estágio pré-natal, embrionário. Ora, como vimos, o tema do rejuvenescimento e da longevidade pelo regressus ad uterum constitui um dos primeiros objetivos do taoísmo. O método mais frequentemente usado é a ''respiração embrionária'' (t'ai-si), mas o alquimista consegue ainda retornar ao estágio embrionário através da fusão dos ingredientes no seu forno. 

A partir de certa época, a alquimia externa (wai-tan) passa a ser considerada ''exotérica'' e contrapõe-se à alquimia interna de tipo ioga (nei-tan), que, só ela, é declarada ''esotérica''. O nei-tan torna-se esotérico porque o elixir é preparado no próprio corpo do alquimista, por métodos de ''fisiologia sutil'', e sem a ajuda de substâncias vegetais ou minerais. Os metais ''puros'' (ou suas ''almas'') são identificados com as diversas partes do corpo, e os processos alquímicos, em vez de serem realizados no laboratório, desenvolvem-se no corpo e na consciência do iniciado. O corpo torna-se o cadinho onde o ''puro'' mercúrio e o ''puro'' chumbo, bem como o semen virile e o sopro, circulam e se fundem. 

Ao se combinarem, as forças yang e yin geram o ''embrião misterioso'' (o ''elixir da vida'', a ''flor amarela''), o ser imortal que acabará por evadir-se do corpo através do occipúcio e subir ao Céu. O nei-tan pode ser considerado uma técnica análoga à ''respiração embrionária'', com a diferença de que os processos são descritos na terminologia da alquimia esotérica. A respiração é identificada com o ato sexual e a obra alquímica -- e a mulher é assimilada ao cadinho.

 

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