Em 1936, a bordo do navio Monte Rosa, o escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998) percorreu a costa brasileira, desembarcando em vários portos e visitando cidades portuárias. As anotações que ele fez em seu diário de viagem estão registradas no livro Viagem Atlântica, que a Editora da USP (Edusp) acaba de publicar. Publicado originalmente em 1947 com o título Atlantische Fahrt, o livro agora tem sua primeira tradução para o português, assinada por Marcos Ribeiro, também autor da apresentação.
Embora curto – apenas 110 páginas – o livro de Jünger chama a atenção pelas discussões bastante atuais que propõe. Por exemplo, o escritor alemão critica a mecanização da memória proporcionada pela fotografia. “As fotografias e filmes dos passageiros atingem o seu clímax no momento em que o navio passa muito próximo da costa, quase a tocando. Nesse momento, que deveria ser inteiramente dedicado à união do olhar com as coisas, as pessoas estão ocupadas com tais esquemas de captura e seus gadgets”, afirma o autor.
Ao chegar ao Pará, Jünger reflete sobre as questões raciais no país após observar os diferentes tons de pele dos trabalhadores nas ruas de Belém. O alemão observa que pessoas com cargos menos respeitados geralmente tinham pele mais escura. “Aqueles que carregavam ferramentas eram preto-ébano, enquanto aqueles que os supervisionavam exibiam uma cor que correspondia a algo como um bom café com leite. Significativamente mais claro foi um funcionário que inspecionou brevemente o status do trabalho, e provavelmente ainda mais claro foram aqueles que estavam sentados nos escritórios”, diz ele. “Aliás, o termo negro é estritamente proibido: ninguém quer ser de cor.”
Jünger comenta, com certo orgulho, que as conquistas mais importantes da civilização brasileira – como arranha-céus, palácios governamentais, sistemas de distribuição de água, portos e aeroportos – referem-se à realidade de países estrangeiros. No início do século XX, os efeitos da colonização na América começaram a ser discutidos e os primeiros sintomas da globalização ganharam destaque. O autor alemão, porém, tinha uma visão crítica da crescente universalização. Escrevendo que “o arsenal de exploração é assim considerado mais significativo do que a riqueza e a cultura do país a que se agrega”, Jünger apresenta uma ideia inicial do que se materializaria nas décadas seguintes: o apagamento das individualidades. em favor de uma cultura global única, orientada pela produção e consumo capitalistas.
Entre críticas sociais e observações sobre o comportamento humano, o escritor também encontra tempo para comentar suas impressões sobre a gastronomia local. Jünger experimentou diversas frutas tropicais, como mamão, manga, abacaxi branco e “laputilha”, fruta não identificada pelo tradutor, que, em nota de rodapé, diz acreditar ser o sapoti, cujo nome Jünger teria ouvido e registrado de uma maneira diferente, errada em seu diário.
As interpretações de Marcos Ribeiro são úteis para a leitura. Em determinado trecho do livro, Jünger prova uma espécie de rum semelhante a “um conhaque obtido de melaço de beterraba”. A nota do tradutor indica que, possivelmente, o alemão se referia à cachaça, bebida proveniente da fermentação e destilação do caldo da cana-de-açúcar.
Em um trecho curioso, Jünger reflete sobre o ritmo frenético típico dos europeus e conclui que, no Brasil – um lugar onde o desejo por atividades espirituais é reduzido, assim como a vontade de ler – o estilo de vida “confortável” e tranquilo traz benefícios à saúde . . Para o autor, seria uma troca: “uma vitalidade superior, acompanhada de um enfraquecimento da espiritualidade”. Em São Paulo, Jünger visitou o Instituto Butantan.
O alemão descreveu a demonstração de extrair o veneno e alimentar as cobras com o mesmo nível de encantamento de quem acabou de ver um espetáculo: “Há algo perturbador no processo, algo como uma ilusão de ótica”.
Viagem Atlântica também aborda a questão da imigração ilegal no Brasil. Jünger diz que um dos seus companheiros de viagem, a quem se referia apenas como “St”, decidiu não regressar a bordo. “Havia nele, acima de tudo, um sentimento favorável à dignidade humana, ao sentido de liberdade e à inviolabilidade da pessoa humana, num país onde a turbulência interna não é incomum”, escreve. Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, houve um aumento do fluxo migratório da Europa para a América, algo que o autor previu corretamente em Atlantic Voyages.
Para o escritor alemão, o Brasil parecia reconhecer as reivindicações individuais de seus cidadãos e respeitar sua integridade, embora essa mentalidade nem sempre se traduzisse na realocação de recursos do governo para ajudar os mais necessitados. Ele cita como exemplos positivos o direito à assistência médica gratuita e a perspectiva de enriquecimento do país, que ainda contava com recursos naturais abundantes. “Isto dá à vida um grau de liberdade que, na velha Europa, já não pode ser alcançado.”
O autor também abusa de metáforas e outras figuras retóricas, que por vezes dão um tom poético ao seu texto. Ao descrever as copas das árvores que observou no rio Pará, por exemplo, Jünger afirma que “seriam boas folhas de figueira para a nudez de um belo Titã”. Como o livro não traz fotos ou outros registros visuais da viagem, as descrições alegóricas do escritor facilitam a compreensão do cenário retratado.
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