quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Indiferença - Antônio Gramsci

 


Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso Odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso.

Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

sábado, 24 de agosto de 2024

A Idade Obscura - Julius Evola

 

Para completar o que já se disse sobre a actualidade do que nas antigas tradições se denominou por «idade obscura>>> kali-yuga é interessante referir algumas das predicções do Vishnupurāna relativas às características desta idade. Vamos transcrever este texto adaptando-o à terminologia actual.

<<Raças de escravos, de fora-de-casta e de bárbaros tornar-se-ão senhores das margens do Indo, do Dârvika, do Candrabhāgā e do Kashmir... Os chefes (desta eral reinarão (então) sobre a terra, serão naturezas violentas... que se apoderarão dos bens dos seus súbditos. Limitados na sua potência, a maior parte deles aparecerá e tombará rapidamente. Será curta a sua vida, insaciáveis os seus desejos, e eles serão impiedosos. Os povos dos diferentes países, misturando-se com eles, seguir-lhes-ão o exemplo.»

«A casta predominante será a dos servos.» «Os que possuem (vaiçya, casta dos "mercadores") abandonarão a agricultura e o comércio e arranjarão meios de subsistência tornando-se servos ou exercendo profissões mecânicas (proletarização e industrialização]

Os chefes, em vez de protegerem os seus súbditos, espoliá-los-ão, e com pretextos fiscais roubarão as propriedades à casta dos mercadores [crise do capitalismo e da propriedade privada; socialização, nacionalização e comunismo]. 

«A sanidade (interior) e a lei [conforme à sua própria natureza: svādharma diminuirão de dia para dia até que o mundo fique inteiramente pervertido. Só os bens conferirão a categoria (a quantidade de dólares as classes económicas). O único móbil da devoção será a saúde (física), a única ligação entre os sexos será o prazer, a única via de sucesso nas competições a falsidade.» «A terra só será apreciada pelos seus tesouros minerais [exploração desenfreada do solo, morte da religião da terra].» «As vestes sacerdotais farão as vezes da qualidade de sacerdote.» «A fraqueza será a única causa da dependência (cobardia, morte da fides e da honra nas hierarquias modernas).» «Uma simples ablução (privada da força do verdadeiro rito) terá o significado de purificação (a pretensão "salutífera" dos sacramentos hoje em dia não se reduziu a pouco mais que isto?].» «A raça será incapaz de produzir nascimentos divinos.>>> Desviados pelos impios, os homens perguntarão: que autoridade têm os textos tradicionais? Quem são estes deuses, o que é a supra-humanidade solar bråhmana]?» «O respeito pelas castas, pela ordem e pelas instituições (tradicionais) desaparecerá durante a idade obscura.» «Os casamentos nesta idade deixarão de ser um rito e as normas que ligam um discípulo a um mestre espiritual deixarão de ter força. Pensar-se-á que qualquer um poderá alcançar, não importa por qual via, o estado de regenerado [a democracia aplicada ao plano da espiritualidade); os actos de devoção que ainda se possam executar não darão nenhum resultado [isto deve referir-se a uma religião "humanizada" e conformista». <<O tipo de vida será promiscuamente igual para todos.» «Quem distribuir mais dinheiro dominará os homens e a descendência deixará de ser um título de preeminen- cia [fim da nobreza tradicional, plutocracia].» «Os homens concentrarão os seus interesses na aquisição, mesmo que seja desonesta, da riqueza.» «Qualquer espécie de homem imaginará ser igual a um brāhmana (prevaricação e presunção dos intelectuais e da cultura moderna].» «As gentes sentirão mais que nunca o medo da morte e a pobreza aterrorizá-las-á: será só por isso que subsistirá (uma aparência de) céu (sentido dos residuos religiosos próprios das massas modernas).>>>

<<As mulheres não obedecerão aos maridos e aos pais. Serão egoistas, abjectas, desviadas, mentirosas e será a dissolutos que se ligarão.» «Tornar-se-ão simples objectos de satisfação sexual.>>>

A impiedade prevalecerá entre os homens desviados pela heresia e a duração da sua vida consequentemente será mais breve.

Todavia, no mesmo Vishnu-purâna faz-se alusão aos elementos da raça primordial, ou «Manu», que permanecerão cá em baixo durante a idade obscura, para serem os germes de novas gerações: e ressurge a conhecida ideia de uma nova manifestação final vinda do alto.

«Quando os ritos ensinados pelos textos tradicionais e as instituições estabelecidas pela lei estiverem prestes a desaparecer e estiver próximo o termo da idade obscura, uma parte do ser divino existente pela sua própria natureza espiritual segundo o carácter de Brahman, que é o princípio e o fim... descerá sobre a terra... Sobre a terra, restabelecerá a justiça: e as mentes dos que estiverem vivos no fim da idade obscura despertarão e adquirirão uma transparência cristalina. Os homens assim transformados sob a influência desta época especial constituirão quase uma semente de seres humanos (novos] e darão o nascimento a uma raça que seguirá as leis da idade primordial (krta-yuga).»

No mesmo texto e lugar diz-se que a estirpe em que «nascerá» este principio divino é uma raça de Shanbhala: mas Shanbhala como se viu na devida altura remonta à metafísica do «Centro», do «Pólo», ao mistério hiperbóreo e às forças da tradição primordial.

sábado, 17 de agosto de 2024

Pátria ou Morte - Ibrahim Traoré


A segunda Cúpula Rússia-África, realizada em São Petersburgo de 27 a 28 de julho de 2023, contou com a participação de delegações de 49 países africanos, incluindo 17 chefes de Estado. A Cúpula representou um importante ponto de inflexão no crescente processo de multipolarização, à medida que o Sul Global se afasta do controle hegemônico centrado nos EUA.

Abaixo está o texto completo do discurso proferido pelo capitão Ibrahim Traoré, presidente interino de Burkina Faso, na Cúpula. Traoré declarou: "um escravo que não consegue assumir sua própria revolta não merece pena. Não sentimos pena de nós mesmos, não pedimos a ninguém que sinta pena de nós". Ele conclamou os africanos a assumirem a luta contra o imperialismo e a pobreza.

Camarada Presidente Vladimir Putin; Camaradas, Presidentes, Chefes de Estado africanos; Camaradas, Chefes de Delegação. Bom dia. É uma honra para mim, nesta manhã, falar aqui e transmitir a vocês as saudações fraternas do povo do país dos homens íntegros. 

Este também é o lugar para eu, em primeiro lugar, agradecer a Deus, Deus Todo-Poderoso, que nos permitiu nos reunirmos aqui esta manhã, com boa saúde, para falar sobre o futuro e o bem-estar de nossos povos. 

Gostaria de pedir desculpas a todos os anciãos que possam se sentir ofendidos por meus próximos comentários. A africanidade obriga o direito de nascimento. Devo me desculpar. 

Camaradas, tenho algumas perguntas de minha geração. Mil e uma perguntas. Mas não temos resposta. 

E acontece que aqui podemos lavar nossa roupa suja porque nos sentimos em família, nos sentimos em família no sentido de que a Rússia também é uma família para a África. Somos uma família porque temos a mesma história. A Rússia fez enormes sacrifícios para libertar o mundo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. O povo africano, nossos avós, também foi deportado à força para ajudar a Europa a se livrar do nazismo. Compartilhamos a mesma história no sentido de que somos os povos esquecidos do mundo, seja em livros de história, documentários ou filmes. Temos a tendência de ignorar o papel fundamental desempenhado pela Rússia e pela África na luta contra o nazismo.

Estamos aqui juntos porque estamos aqui para falar sobre o futuro de nossos povos, sobre o que vai acontecer amanhã, sobre esse mundo livre ao qual aspiramos, esse mundo sem interferência em nossos assuntos internos. Temos as mesmas perspectivas e espero que esta cúpula seja uma oportunidade de estabelecer relações muito boas com o objetivo de um futuro melhor para nossos povos. 

As perguntas que minha geração está fazendo são as seguintes. Se eu puder resumir, é que não entendemos como a África, com tanta riqueza em nosso solo, com uma natureza generosa, água e sol em abundância - como a África é hoje o continente mais pobre. A África é um continente faminto. E como é possível que haja chefes de Estado em todo o mundo pedindo esmolas? Essas são as perguntas que estamos nos fazendo, e até agora não temos respostas. 

Temos a oportunidade de forjar novos relacionamentos, e espero que esses relacionamentos sejam os melhores para dar aos nossos povos um futuro melhor. 

Minha geração também me pede para dizer que, devido a essa pobreza, eles são forçados a atravessar o oceano para tentar chegar à Europa. Eles morrem no oceano, mas logo não precisarão mais atravessar, pois virão aos nossos palácios para buscar o pão de cada dia.

Quanto ao que diz respeito a Burkina Faso hoje, há mais de oito anos estamos sendo confrontados com a forma mais bárbara e violenta de neocolonialismo imperialista. A escravidão continua a se impor sobre nós. Nossos antecessores nos ensinaram uma coisa: um escravo que não consegue assumir sua própria revolta não merece pena. Não sentimos pena de nós mesmos, não pedimos a ninguém que sinta pena de nós. O povo de Burkina Faso decidiu lutar, lutar contra o terrorismo, a fim de relançar seu desenvolvimento. 

Nessa luta, pessoas valentes de 20 populações se comprometeram a pegar em armas para enfrentar o terrorismo. Isso é o que chamamos carinhosamente de VDP [Voluntários para a Defesa da Pátria] de voluntários. Ficamos surpresos ao ver os imperialistas chamando esses VDPs de milícias e todo tipo de coisa. É decepcionante porque, na Europa, quando as pessoas pegam em armas para defender sua pátria, elas são chamadas de patriotas. Nossos avós foram deportados para salvar a Europa. Não foi com o consentimento deles, [foi] contra a vontade deles. Bem, ao retornar, lembramos bem que em Thiaroye, quando eles queriam reivindicar seus direitos básicos, foram massacrados. Não importa, então, que quando nós, o povo, decidimos nos defender, somos chamados de milícia.

Mas esse não é o problema. O problema são os chefes de Estado africanos que não contribuem com nada para essas pessoas que estão lutando, mas que cantam a mesma música que os imperialistas, chamando-nos de milícias, chamando-nos de homens que não respeitam os direitos humanos. De quais direitos humanos estamos falando? Nós nos sentimos ofendidos com isso, é vergonhoso. Nós, chefes de Estado africanos, precisamos parar de nos comportar como marionetes que dançam toda vez que os imperialistas puxam as cordas. 

Ontem, o presidente Vladimir Putin anunciou que enviaria grãos para a África. Estamos muito satisfeitos. Agradecemos a ele por isso. Mas essa também é uma mensagem para nossos chefes de Estado africanos. Porque no próximo fórum, não podemos vir aqui sem garantir, para aqueles que não estão familiarizados com a guerra, que nosso povo seja autossuficiente em alimentos. Precisamos aproveitar a experiência daqueles que já conseguiram isso na África, estabelecer boas relações aqui e estabelecer melhores relações com a Federação Russa para que possamos atender às necessidades de nosso povo. 

Não vou me estender muito. O tempo é muito curto. Temos que parar em um determinado ponto. Mas eu gostaria de terminar dizendo que devemos, portanto, prestar homenagem aos nossos povos, aos nossos povos que estão lutando.

Glória aos nossos povos, dignidade aos nossos povos, vitória aos nossos povos. Pátria ou morte, nós venceremos! Obrigado, camaradas!

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A história de Giorgio Vale - O Terrorista Neofascista Afro-Italiano

 


Giorgio Vale foi um terrorista neofascista italiano, um dos líderes das NAR, as Forças Armadas Revolucionárias, e entre o final dos anos setenta e o início dos anos oitenta atuou entre outros ao lado de Valerio Fioravanti, Francesca Mambro, Luigi Ciardini, Stefano Soderini e Gilberto Cavallini. Vale foi definido como O Corpo Estranho no título do livro que os historiadores Carlo Costa e Gabriele Di Giuseppe escreveram recentemente sobre ele: sua mãe era na verdade italiana e seu pai eritreu, o que fez de Vale o único terrorista negro neofascista do os chamados “anos de liderança” em Itália, e provavelmente entre os poucos na Europa.

O livro começa com uma pergunta: como explicar a experiência de Giorgio Vale, um importante militante da extrema direita armada e ao mesmo tempo afro-italiano? «A história de Vale, um neofascista irredutível», escrevem Costa e Di Giuseppe, «que morreu com vinte e poucos anos em maio, no início da década de 1980, não é uma história exemplar, mas uma história aparentemente inexplicável, uma história difícil de explicar. desvendar».

A história de Giorgio Vale é comum à de centenas de outros jovens que naqueles anos decidiram armar-se e disparar nas ruas, inspirados no rebelismo e na luta anti-sistema que também caracterizaram alguns grupos de extrema direita. Participou como atirador ou como elemento de cobertura em alguns dos crimes mais ferozes cometidos pela NAR, que muitas vezes tinha como alvo a polícia: uma forma de se distinguir da geração anterior de terroristas neofascistas, a de Franco Freda e Giovanni Ventura , acusado de estar em conluio com o exército, com os serviços secretos, com o Estado.

Pouco se sabe sobre ele, mas foi uma figura importante daqueles anos. “É óbvio que o elemento familiar, o facto de ter a pele escura, foi um dos elementos de curiosidade e interesse no início da nossa investigação”, afirma Costa. «Mas daqui para frente ficou claro que a história da Vale se integra bem com a dos dois grupos em que disputou, mesmo ao mesmo tempo, Terceira Posição e NAR».

Seu pai, Umberto Vale, também filho de um italiano e de uma eritreia, deixou a África em 1929 a partir do porto de Massawa. Em Roma foi barbeiro e casou-se com Anna Antonia Garofali, filha do dono de uma serraria de travertino em Tivoli. O corpo estranho reconstrói sua história como um menino que cresceu em Roma, no bairro Balduina, filho da burguesia daqueles anos e da história colonial italiana. O pai não entendeu a sua escolha: “Você foi atrás deles como um cachorrinho”, disse-lhe, lembrando-lhe os nomes racistas com que era chamado. No seu grupo era de facto chamado de "o Drake", como o mito do corsário inglês dos neofascistas, mas também de " o Negretto ".

Vale aproximou-se da direita radical no seu bairro, Balduina, «um bairro entre os vermelhos e os pretos», diz Costa. «Quando perguntamos ao seu irmão e a outros por que ele se aproximou dos grupos neofascistas, todos responderam vagamente: “o meio ambiente”».

A primeira vez que o nome de Giorgio Vale apareceu em um boletim de ocorrência foi em 16 de março de 1979, quando ele foi preso por brigar com militantes de movimentos de esquerda. Já era militante do grupo estudantil Terceira Posição, movimento fundado no final dos anos setenta por Roberto Fiore, hoje chefe da Forza Nuova e preso pelo ataque à sede da CGIL em 9 de outubro , junto com Gabriele Adinolfi e Giuseppe Dimitri. Em 1979 conheceu Valerio Fioravanti e seus amigos, muitos dos quais haviam deixado o Movimento Social Italiano e decidiram seguir caminhos diferentes. Fioravanti disse: «No MSI queriam que apanhássemos e devolvêssemos, mas sem exagerar. Nós, no entanto, queríamos retribuir mais."

O grupo de Fioravanti, que se autodenominava NAR, já havia matado. Em 28 de Fevereiro de 1978, dois meses após o assassinato de Francesco Ciavatta e Franco Bigonzetti, dois jovens militantes do MSI da secção romana de Acca Larentia, Valerio Fioravanti, o seu irmão Cristiano, Alessandro Alibrandi, Franco Anselmi e cinco outras pessoas decidiram levar a cabo uma ação de vingança. Inicialmente pretendiam atacar uma casa ocupada, que no entanto tinha sido evacuada pela polícia no dia anterior. Eles então seguiram em direção aos jardins da Piazza San Giovanni Bosco e começaram a atirar em um grupo de meninos sentados nos bancos. Um deles, Roberto Scialabba, operário e militante de esquerda, caiu no chão: Fioravanti montou nele e atirou duas vezes na cabeça dele.

Enquanto Vale continuava mantendo seu papel na Terceira Posição - era chefe do grupo operacional e realizava roubos para financiar o movimento - ele se aproximava cada vez mais do NAR até liderar uma dupla militância, sem o conhecimento dos líderes da Terceira Posição .

Com o NAR, Vale realizou sua primeira ação em 6 de fevereiro de 1980. Junto com Valerio Fioravanti tentou roubar a submetralhadora Beretta M-12 de um policial de plantão em frente à embaixada do Líbano. O agente reagiu e Fioravanti o matou. No livro de Costa e Di Giuseppe, o amigo Lorenzo Soderini lembra que «Giorgio ficou completamente hipnotizado pelo contexto, especialmente envolvido por Fioravanti».

O livro inclui muitos testemunhos diretos que ajudam a enquadrar o papel de Vale dentro dos grupos neofascistas, e também a percepção que outros militantes tinham dele, bem como o tratamento que lhe reservavam. Roberto Nistri, que com Vale jogou na Terceira Posição e no NAR, afirma que «o ambiente era o que era (...) é claro que o fascista é racista, mas no final ninguém deu a mínima». Chamadas racistas eram a norma, no entanto. Certa ocasião, diz Nistri, Roberto Fiore disse sobre Vale: “ele é legal, para um negro ”.

«Que Giorgio Vale era filho de um negro era evidente a olho nu. No entanto, ninguém ousou comentar o assunto. (…) Acredito também que ele nunca teve problema com isso. Lembro-me dele como uma pessoa muito silenciosa”, lembra Elena Venditti, ex-militante da Terceira Posição, no livro.

Segundo o depoimento de uma mulher que era militante de esquerda na época, «Giorgio era muito bonito e muito mau, mas realmente não era estranho que ele fosse negro, não parecia deslocado (.. .) tinha um estilo muito parioliano, em suma», disse ela no livro referindo-se aos habitantes de Parioli, um bairro rico do norte de Roma.

No dia 28 de maio de 1980, Vale, Fioravanti, Francesca Mambro e Luigi Ciavardini, a bordo de duas Vespas, passaram em frente ao colégio Giulio Cesare, em Roma. Queriam desarmar os policiais que normalmente ficavam em frente à escola. Era para ser uma ação sensacional, idealizada pelo próprio Vale, para recuperar novas armas e impressionar os alunos. Terminou com o assassinato do policial Franco Evangelista, muito conhecido no bairro, chamado Serpico, como protagonista do filme de Sidney Lumet com Al Pacino. No dia seguinte o Mensageiro escreveu:

«Serpico é muito popular no bairro. Chamam-no assim porque é um policial bom e imprudente, protagonista de muitas aventuras. Ele prendeu bandidos durante alguns assaltos, foi jogado pela janela por um ladrão que pegou em um apartamento, se disfarçou com barba e perucas falsas para pegar traficantes de heroína”.

A relação da Vale com a NAR durou alguns anos e foi muito violenta, «uma corrida à destruição», diz Costa, «com uma componente niilista e sem possibilidade de parar. Eles foram parados por mortes e prisões. Giorgio Vale é um daqueles que foi mais longe que qualquer outro, não conseguia parar”.

Em 23 de maio de 1980, o NAR matou o juiz Mario Amato em Roma. Ele estava desacompanhado no ponto de ônibus. Há dois anos que investigava o terrorismo neofascista, estava completamente isolado no Ministério Público e o seu chefe disse-lhe que estava a investigar "fantasmas". Seu líder era o juiz de instrução Antonio Alibrandi, pai de Alessandro, um dos dirigentes do NAR.

Posteriormente, seguiram-se assassinatos e roubos. A Vale e os dois irmãos Fioravanti mataram Francesco Mangiameli, gestor da Terceira Posição acusado de roubar dinheiro que teria sido usado para organizar a fuga da prisão do terrorista fascista Pierluigi Concutelli. Em 28 de agosto de 1980, 26 dias após o massacre na estação de Bolonha, o judiciário emitiu 28 ordens de prisão contra líderes da Terceira Posição e do NAR. Fioravanti, Vale, Mambro, Cavallini e Soderini começaram a se deslocar por toda a Itália. Em Milão realizaram assaltos com um membro da gangue de Renato Vallanzasca, Mauro Addis. Durante os assaltos, eles atiraram e mataram.

Durante a fuga, Vale continuou mantendo contato com sua família. Seu pai Umberto escreveu para ele:

«O que você fez ou deixou de fazer, você sabe a verdade (…) A sua constituição voluntária torna-se urgente, é um ponto a seu favor. Esta noite (23/12/1980) vimos e ouvimos as belas façanhas de seus amigos. Vale a pena estar perto dele? Descarregue tudo, caso contrário você acabará morto no asfalto."

Seu irmão Riccardo lembra que uma noite suas motos e scooters foram roubadas da garagem: ele estava convencido de que era a polícia que tentava forçá-lo a viajar de carro, o que era mais fácil de seguir. Em 30 de julho de 1981, o nome de Giorgio Vale apareceu nas comunicações judiciais como participante no massacre de Bolonha (o seu papel foi posteriormente excluído). Vale tornou-se um dos fugitivos mais procurados e perigosos da Itália.

Naquele ano, os líderes mais importantes do NAR foram presos. Em 5 de fevereiro de 1981, caiu nas mãos de Valerio Fioravanti em Pádua, após um tiroteio em que morreram os carabinieri Enea Codotto e Luigi Maronese. Dois meses depois, seu irmão Cristiano foi capturado e imediatamente começou a colaborar com o judiciário. Em 2 de abril, Massimo Carminati foi preso perto da fronteira com a Suíça, em Gaggiolo, após um tiroteio que lhe causou a perda do olho direito.

Em 10 de julho de 1981, a Vale invadiu a casa de Giuseppe De Luca, conhecido como Pino il calabro , membro do NAR acusado de traidor. Ele o perseguiu até o banheiro, independentemente da família do homem, e o matou.

Três meses depois, o NAR emboscou o capitão do Digos, Francesco Straullu, em Acilia, que investigava gangues terroristas fascistas. Eles pensaram que ele estava viajando em um carro blindado e usou metralhadoras e rifles de assalto com balas traçadoras. O carro era normal, não blindado: foi um massacre. O agente Ciriaco Di Roma morreu com Straullu.

No dia 5 de dezembro, Alessandro Alibrandi foi morto durante um tiroteio com a polícia de trânsito perto de Roma. Giorgio Vale e Francesca Mambro continuaram foragidos, praticamente sozinhos. Também se esconderam numa casa em Roma, na via Gradoli, onde em 1978 existia um dos esconderijos das Brigadas Vermelhas durante o sequestro de Moro. Roberto Nistri recorda: «Cinquenta metros antes havia um apartamento com dois fugitivos dentro (...) Cinquenta metros depois havia outro apartamento com Giorgio e Mambro. Se você contar essa história agora, poderá até fazer um filme sobre ela." Muitos apartamentos na Via Gradoli eram administrados por um incorporador imobiliário romano, também envolvido em empresas de fachada do serviço secreto.

A última ação em que a Vale participou foi a tentativa de assalto à Banca Nazionale del Lavoro na Piazza Irnerio, em Roma. Durante a agressão, um estudante de 17 anos que passava por ali, Alessandro Caravillani, foi morto a bala. Francesca Mambro ficou ferida, Vale e os demais integrantes do grupo a deixaram em frente ao hospital Santo Spirito.

Nos meses anteriores, a família de Vale havia sido contatada pelos serviços secretos, que iniciaram uma espécie de negociação para que o menino se entregasse. Seu pai, Umberto, escreveu ao filho:

«Só há duas possibilidades, entregar-se dizendo que se dissocia de todo este crime político que não faz sentido e entregar as armas (…) Caso contrário procura a morte, a traição, sem propósito e trai-se (…) ) Vamos tentar reparar os males que você criou apesar de ir contra sua verdadeira identidade moral."

Na manhã de 5 de maio, Giorgio Vale foi morto em um apartamento na via Decio Mure 43, no bairro Quadraro, em Roma. Os agentes do Digos invadiram a casa e foram encontradas centenas de balas: Vale morreu com um único tiro, na cabeça. Eles o encontraram deitado na cama. Na primeira versão, a polícia dizia que ele havia cometido suicídio, mas análises científicas descartavam que ele tivesse se suicidado. No dia seguinte, os jornais escreveram que Vale, numa longa carta à mãe, havia escrito: “Jamais me levarão vivo”.

No entanto, essa carta nunca existiu. A família alegou imediatamente que o tiroteio havia sido encenado: que Vale havia sido morto apesar de ter se rendido e que os tiros foram disparados posteriormente para justificar o assassinato. Em retaliação, no dia seguinte um comando da NAR matou o policial Giuseppe Rapesta em Roma. Em 12 de agosto, na prisão de Novara, Pierluigi Concutelli estrangulou Carmine Palladino até a morte, considerado responsável pela denúncia que levou Digos ao apartamento na Via Decio Mure.

Solitude - Mário Ferreira dos Santos

  O homem superior é um solitário. Na época atual do homem-massa, em que o gosto se generaliza num sentido de perspectiva comum, de anseios ...