A singularidade histórica dos Estados Unidos reside em sua constituição como uma anti-nação; isto é, uma ordem política onde a vontade deliberativa suplanta um destino cultural homogêneo, o direito positivo ligado ao contrato social e as relações sociais subordinadas ao mercado substituem a lei tradicional; e o cidadão universal desloca o membro de uma comunidade histórica. O liberalismo opera aqui como o mecanismo que transforma essa abstração em instituição, esvaziando e corroendo a esfera social de qualquer particularismo concreto, ao mesmo tempo em que cria uma identidade ilusória que legitima sua natureza negativa e oposta à continuidade cultural e histórica do coletivo.
Nesse cenário, a figura que busca uma identidade nacional genuína enfrenta uma paradoxa ontológica insuperável, um ouroboros. Sua reivindicação de raízes, de memória coletiva ou de destino compartilhado colide com a própria arquitetura do Estado, que só reconhece indivíduos desenraizados, atomizados e vontades contratuais separadas. Por isso, seu projeto não pode ser patriótico no sentido convencional, mas deve aspirar à desmontagem e aniquilação metapolítica dos fundamentos iluministas que dão origem aos Estados Unidos em primeiro lugar. Assim como os Estados Unidos negam em seu Gênesis toda tradição e cultura desprovida de caráter mercantil, o arquétipo desse sujeito revolucionário nega sua própria existência na busca de purificar o próprio ser e completar o ciclo que dê passagem a uma sociedade com identidade orgânica.
Longe de ser uma questão tradicionalista, representa a contradição viva da modernidade política; a prova de que quando um Estado se edifica sobre o esquecimento sistemático da terra em que reside, toda busca por identidade se converte em um ato de insurreição contra a ordem constituída, o que implica a necessidade de ir contra si mesmo. É a água buscando o ponto mais baixo de elevação para poder desaguar.
O expansionismo estadunidense representa a fase terminal de sua lógica constitutiva: a imposição global do indivíduo mercantil sobre o sujeito histórico concreto. Enquanto as nações hispano-americanas preservam a continuidade de uma memória cultural enraizada e sobretudo religiosa, onde a comunidade precede o contrato, a tradição precede o direito positivo e a honra precede o cálculo mercantil, a doutrina de controle político internacional norte-americano opera como um dispositivo de des-substanciação identitária por meio da subordinação. Sua estratégia não se limita à dominação econômica ou militar, mas busca a colonização das categorias existenciais — cultura, religião, pensamento; substitui o “nós” herdado pelo “eu” consumidor, a lealdade orgânica pelo contrato social, o sentido de honra pela ética do sucesso material. O “sonho americano” é assim a ferramenta perfeita para desmantelar sociedades cuja particularidade histórica do povo foi a coluna vertebral de sua existência, e substituir tudo isso por um monopólio de mercado que garante a acumulação de riqueza das grandes transnacionais e corporações que controlam o Estado.
Diante dessa máquina de aculturação e atomização, a resistência hispano-americana adquire um caráter metapolítico e civilizatório; não defende meramente territórios ou recursos, mas a própria possibilidade de uma forma de vida anterior e superior à lógica iluminista que o inimigo anglo-saxão encarna. Cada gesto de preservação cultural, cada afirmação da hispanidade (entendendo hispanidade também como a mestiçagem entre o hispânico e o americano, a América espanhola), torna-se um ato de sabotagem contra o projeto globalista dos Estados Unidos, a prova viva de que sua cosmovisão não é o fim da história, mas a expressão primigênia de varrer tudo para aumentar o consumo e a riqueza material.
A Venezuela emerge no século XXI, por meio da revolução bolivariana, como a encarnação mais radical da resistência contra a ontologia estadunidense e ocidental, e portanto como uma autêntica expressão da reafirmação da tradição, vestida com roupagens e representações populares necessárias que serviram inicialmente como instrumento de reação contra a lógica liberal-burguesa da oligarquia ponto-fijista, que logicamente estava profundamente vinculada à execução e construção do andamiaje globalizador, cosmopolita e alienado ditado pelos Estados Unidos. E foi isso mesmo que fez com que, das entranhas do próprio povo venezuelano, surgisse o caráter revolucionário carregado de projeção e continuidade histórica, que encontrou como catalisador o contexto do sistema de monopólio liberal rentista-extrativista reforçado pelo “paquetazo” neoliberal.
Longe de ser uma mera oposição geopolítica, a Venezuela representa hoje a defesa metapolítica da organicidade diante da corrosão universalizante.
Enquanto os Estados Unidos prosseguem com seu projeto interminável baseado no desenraizamento sistemático — transformar povos em mercados, tradições em folclore e cidadãos em consumidores — a Venezuela mobilizou o substrato profundo do popular como trincheira civilizatória. Onde o modelo pan-americano postula o indivíduo abstrato, a Venezuela responde com a comunidade concreta, e com a edificação do território e da fronteira que dá forma à pátria como satélite de sociedades e culturas já convertidas em potências que se opõem a essa ordem disgregadora representada pelo mal chamado “Ocidente”: a China, civilização milenar; a Rússia, o maior país do mundo convertido em império em diferentes momentos históricos, com uma síntese própria euroasiática; e o Irã, o povo persa sob o Islã. Onde o inimigo impõe o contrato mercantil disfarçado de civilização e exemplaridade baseada no indivíduo de classe média (o qual, além de irreal, serve para castrar a organização proletária), esses agentes fiéis ao solo e à história do povo afirmam o laço histórico. Onde o projeto iluminista-liberal universaliza e globaliza mediante a falsa promessa de unidade e consenso ao preço do abandono da identidade, na América o processo bolivariano particulariza, como continuação histórica e civilizatória da raiz hispânica; ainda que pareça paradoxal para muitos, o projeto da América bolivariana unificada é apenas a transformação dialética tácita e evolutiva da organização político-estatal da América espanhola.
Essa resistência não é ideológica no sentido comum, pois o ideológico — pela natureza do sistema democrático, liberal e burguês que ainda suprime nossas vontades — foi reduzido a algo associado aos partidos. Agora é existencial e, como já se repetiu ao longo deste texto, é sobretudo civilizatório: defende a própria possibilidade de uma sociedade organizar-se a partir de memórias longas, solidariedades orgânicas e projetos coletivos não mediados pela lógica do capital. Os bairros organizados, as comunas e cada expressão de economia popular constituem um ato de sublevação sistemática e estrutural contra o individualismo metodológico e o cosmopolitismo burguês que os Estados Unidos precisam impor para sua reprodução imperial.
Por isso, o conflito com a Venezuela transcende o econômico ou o político; trata-se da batalha entre dois princípios antagônicos de organização social, de duas civilizações, e a Venezuela representa a hispânica pela própria condição à qual foi submetida. Todos os países da região estão subordinados de uma forma ou de outra à ordem política e econômica estadunidense — exceto a Venezuela. Os Estados Unidos não podem tolerar a existência de um projeto que demonstra, em pleno século XXI, que é possível subtrair-se de sua matriz cultural, especialmente quando os EUA consideram a América hispânica seu “quintal”, mas não parte de si mesmos como seria, por exemplo, o Estado da Califórnia. Que os povos possam escolher a fidelidade à sua própria carne histórica em vez da sedução da alienação e da submissão a um mercado monopolizado é a própria vontade de levar a sociedade à luta por uma insubordinação originária, e em consequência ao combate contra o hegemon, expresso no desenvolvimento interno e na industrialização.
Mas, assim como a revolução bolivariana se apresenta como baluarte da tradição e do pensamento autóctone venezuelano — apesar dos males e vícios herdados de um sistema político corroído pelo liberalismo — também surgem agentes exógenos, que se valem da retórica de superação das contradições materiais e dos problemas acumulados ao longo das últimas décadas para atuar a favor da disgregação civilizatória, da imitação caricatural do modelo democrático neoliberal, baseando-se no mito da natureza política dos valores ocidentais (conceitos próprios da ontologia liberal protestante).
É aqui que entra a figura, dentro da política e da teoria política contemporânea, representada por Carlos Rangel, a perfeita encarnação do agente exógeno; aquele que, desde dentro, executa o programa de desorganização cultural desenhado nos centros do poder globalista. Sua obra não é uma simples análise da realidade política; é um manual de instruções para a autoaniquilação nacional e a posterior subordinação total e exagerada.
Rangel opera mediante uma inversão superficial dos termos: apresenta o que é próprio como defeito e o alheio como virtude. Nossa tradição comunitária vira atavismo; nosso sentido de honra, tradição e governança transforma-se em ineficiência e autoritarismo (eufemismo típico do fundamentalismo democrático). Nossa resistência ao individualismo anglo-saxão é diagnosticada como subdesenvolvimento cultural. Sua prescrição é sempre a mesma: que a Venezuela deve deixar de ser Venezuela para se transformar numa caricatura tropical dos Estados Unidos.
O mais insidioso de seu projeto é a forma como utiliza problemas reais e tangíveis — corrupção, clientelismo — como cavalo de Troia para importar uma ontologia estranha, que não é própria nem deriva de uma análise material da sociedade, mas de atribuições naturalistas e fundamentalistas sobre o pensamento e a psicologia do povo. Ao denunciar nossos males concretos, tenta convencer-nos de que é necessário sacrificar nossa alma — isto é, nossa identidade coletiva — no altar da vil lógica do livre mercado e do cosmopolitismo ocidental.
Hoje, seus herdeiros intelectuais continuam essa obra dissolutiva. Cada vez que atacam o Estado venezuelano, não propõem melhorá-lo, mas aboli-lo; quando criticam o populismo, na verdade condenam a soberania popular; quando falam de liberdade, referem-se à liberdade do capital para reorganizar nossa sociedade; e quando falam de corrupção, fazem-no para atribuí-la dogmaticamente a uma forma de governo, e não como um elemento sociológico que permeia a sociedade como um todo.
Diante desse projeto de extinção e abolição identitária, o caráter revolucionário e bolivariano adquire um papel existencial, de vanguarda intelectual e de estandarte. Não se trata de defender um governo; é preciso compreender o processo revolucionário na Venezuela como um fenômeno de envergadura histórica, e não como mera gestão pública. Trata-se de proteger a vontade de existir como povo baseado em uma memória — como bem dizia Briceño Iragorry: “A história como sentido de continuidade e permanência criadora” — com projetos coletivos, com uma identidade que precede e supera o mercado enquanto articulador da sociedade, das relações entre os indivíduos e da projeção coletiva.
